terça-feira, julho 26, 2005

Kill Bill

Irônico, cínico, violento, pós-moderno

Quanto já se falou sobre os mais de 80 filmes em que Quentin Tarantino se "inspirou" para escrever apenas a primeira parte do seu Kill Bill? Quantos artigos já foram publicados tentando desvendar esse quebra-cabeça de citações? Mas isso é apenas uma das facetas do que essa colagem de filmes (de kung fu, de faroeste e de gângsteres) pode sugerir.

Talvez exista algo mais importante a ser discutido que está além da trama simplista da vingança de uma noiva grávida (interpretada pela atriz Uma Thurman), que sofre, no dia do seu casamento, em pleno altar, um sangrento atentado. Por que não estranhamos que uma obra que traz uma carga autoral como essa seja basicamente formada por referências a outros filmes?

A obra de Quentin Tarantino sempre se ancorou em referências a filmes de estilo retrô. E ele levou tão a sério esse modo de fazer cinema que já ganhou até um adjetivo: tarantinesco. Em entrevistas, o diretor faz questão de ressaltar que sua bagagem fílmica paira sobre esse mundo do kung fu classe B e, mais ainda, do western spaghetti (faroeste feito na Itália durante a década de 1960).

Há, ainda, um outro importante ponto de apoio em sua obra, a violência. Tarantino costuma se irritar, mas muitos apontam o cineasta Martin Scorcese (de Taxi driver e Gangues de Nova York) como o seu mentor imagético. E violência é o que não falta em Kill Bill.

Mas Kill Bill não é um filme naturalista, não busca na verossimilhança o suporte da sua trama. Em Kill Bill há sangue jorrando em cascatas; espadas que amputam membros com precisão cirúrgica; aviões que permitem passageiros transportando espadas de samurais; uma última batalha em um grande jardim com neve artificial; a absoluta inexistência de policiais, mesmo quando se trata de uma centena de mortos. Mas toda não-coerência do roteiro é suplantada por essa antropofagia estética, que possibilita, ainda, que um flashback seja apresentado como em uma animação ao estilo japonês. Aí está uma lacuna que permite o exagero e que, ao mesmo tempo, não deixa o filme cair na apologia da violência gratuita. A violência é exagerada, mas é conceitual.

Tarantino talvez não saiba, mas Kill Bill é um filme pós-moderno por excelência. Nele, estão várias características de nosso tempo, um dos critérios óbvios para se julgar o valor de uma obra (de arte?). Vivemos na era das cópias ilegais, da Internet, do MP3, dos programas de compartilhamento de arquivos e, para não esquecer dos primos não digitais, da xerox institucionalizada.

O pós-moderno surge no filme dentro das tantas referências, presentes desde a roupa da heroína (cópia de um quimono utilizado por Bruce Lee) até a estruturação dramática em si, que homenageia gêneros específicos do cinema. Tarantino chega ao cúmulo de referenciar seus próprios filmes, fazendo citação a Cães de aluguel e Pulp fiction. É óbvio, como já dito, que não é em Kill Bill que ele descobre esse modus operandi. No entanto, é nesse filme em que ele chega ao ápice, pois, antes de ser a história de uma vingança, Kill Bill é um filme sobre filmes. É o cinema se recontando, mesmo que seja de forma irônica e cínica.

Para citar apenas alguns exemplos, há ironia quando atribui a autoria de um provérbio popular a uma raça alienígena da série de TV Guerra nas estrelas; e há cinismo quando o filme se nomeia obra autoral, como indicam os créditos iniciais, que ostentam, orgulhosamente, ser o quarto filme de Quentin Tarantino.

Kill Bill ainda assume a futilidade de uma época que está pouco preocupada em aprofundar seus dilemas. A noiva que parte em busca de uma vingança desvairada não demonstra quase nada além desse objetivo. Ela e os outros personagens são praticamente bidimensionais. Apenas Bill (que surge apenas do pescoço para baixo - e é quem parece melhor deter a situação) deixa transparecer alguma fragilidade quando confessa seu masoquismo. A exemplo dos outros filmes de Tarantino, seus personagens parecem um espelho satírico da sociedade americana.

Mas a atualidade tem seu preço. Um filme que fala a língua específica de sua época, sobretudo se for de forma meramente imagética, corre o risco de tornar-se datado e, em apenas alguns anos, perder o vigor. No entanto, se julgarmos por um dos seus irmãos mais novos, Pulp fiction, é provável que isso não ocorra, já que, desde seu lançamento, já se foram dez anos e o filme ainda continua atual. Talvez o que venha a se tornar efêmero seja esse modo de filmar. O tarantinesco já virou escola e fórmula para a produção em série.

Originalmente publicado em www.educacaopublica.rj.gov.br

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