domingo, fevereiro 18, 2007

O Céu de Suely


Iguatu é uma cidade de 92 mil habitantes cravada no centro do sertão cearense. É para lá que Hermila se desloca nos instantes iniciais de O Céu de Suely, segundo longa-metragem de Karim Aïnouz. Ela chega de ônibus, trazendo no braço o peso de um filho pequeno e da bagagem do que restou de dois anos em São Paulo.

Assim como em Madame Satã, primeiro filme do diretor, O Céu de Suely vai se construir na proximidade da câmera com sua protagonista, renegando artifícios puramente dramatúrgicos, focando-se no que há de essencial para a compreensão da personagem. Mas Hermila não tem a histeria de Madame Satã e se em seu primeiro longa-metragem Karim Aïnouz oscilou o foco de seus planos para acentuar a ira do protagonista, nesse segundo há uma delicadeza que busca os detalhes, as texturas da região, a dor de uma Hermila muito nova para ter um filho, grande demais para permanecer em sua pequena Iguatu.

Hermila retorna para viver ao lado de uma tia e de sua avó, enquanto espera a chegada do marido que permaneceu em São Paulo. Mas ele não vem e logo ela descobre que foi abandonada. A personagem, então, decide partir novamente, mas para arrecadar dinheiro para sua viagem, promove uma rifa na qual o prêmio é “uma noite no paraíso”. Hermila decide se prostituir por uma noite apenas, em troca de uma nova chance de estar longe de Iguatu. É daí que vem o título do longa-metragem, pois ela ao vender a rifa escolhe o pseudônimo Suely.

A protagonista é interpretada pela atriz pernambucana Hermila Guedes que, assim como os outros atores, empresta seu nome para a personagem. A escolha pelo batismo foi uma tentativa de aproximar os atores dos seus papéis, de deixá-los imersos na vida de seus personagens. Na verdade, esse foi apenas uma pequena parte da longa preparação feita por Fátima Toledo. No trabalho de preparação, os atores viveram por dois meses como moradores de Iguatu, usavam as roupas do próprio filme e tiveram que se mesclar à cidade, em um movimento de imersão que resultou em atuações orgânicas e no prêmio de melhor atriz feminina no Festival do Rio de 2006. Mas as interpretações de O Céu de Suley não são resultado apenas do trabalho de preparação de elenco, mas também da persistência de Karim Aïnouz em privilegiar as atuações. Além dessa imersão, a estrutura do filme foi montada sempre para servir aos atores. Nas filmagens, por exemplo, a própria claquete foi abolida, no intuito de afastar o maior número de elementos que pudessem interferir no trabalho dos atores.

O Céu de Suely é um filme de sensações. Embora nele seja possível identificar todo um esforço de roteiro para levar o espectador a acompanhar um enredo com começo-meio-e-fim, o que sobressalta é a sua forma de olhar. Um olhar sem julgamentos que está muito mais a serviço da personagem do que de maneirismos cinematográficos. Quando Karim Aïnouz deixa que a cidade interfira na linha narrativa do filme, é isso que está fazendo. Porque ele se apropria de um discurso imagético e auditivo que é característico da região e o faz a favor do filme. Um outro exemplo é a escolha da trilha sonora, que pontua o longa com músicas do chamado tecno-brega. São versões de músicas pops estrangeiras em ritmo de forró.

De certa forma, O Céu de Suely está localizado ao lado de outras produções recentes do cinema nacional. Aliás, produções que de algum modo tiveram participação do próprio Karim Aïnouz, como Cidade Baixa, de Sérgio Machado e Cinema Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes. Ambos os filmes têm a participação do diretor de O Céu de Suely no roteiro. O que emparelha esses filmes numa linha próxima é a vontade de buscar um cinema que não esteja propriamente ligado a uma narrativa no qual o conflito é a chave para o princípio e o fim. São filmes que também procuram não contar para melhor contar.

É óbvio que nada disso é novidade na historiografia do cinema, mas é interessante notar como de tempos em tempos há movimentos de idas e vindas e como se prestarmos atenção, é possível antever a chegada de outros nesta mesma linha.

A proximidade que o Céu de Suely tem com um modo de discurso fílmico não o subjuga em nenhum momento. Pelo contrário, os não ditos, os silêncios, a delicadeza dessa produção é o grande trunfo que os 90 minutos de filme dão ao público.