domingo, agosto 21, 2005

Menina Santa


Como num toque de theremin

Há em Menina Santa, segundo filme da argentina Lucrecia Martel (de O Pântano), uma contemplação sobre a fronteira entre o lícito e o proibido. Em um filme em que os temas centrais são o corpo e a religiosidade, a câmera busca em duas meninas em início de puberdade, seu foco narrativo. No entanto, parece pouco tentar aprisionar uma obra deste porte em apenas duas palavras: corpo e religião. Menina Santa não se resume apenas a isso, porque a todo o tempo o filme parece fugir do maniqueísmo e das explicações fáceis.

No início de Menina Santa, ouvimos uma música sacra. Voz e piano. Uma mulher canta e chora. As lágrimas interrompem de tempos em tempos seu canto. Não sabemos o porquê de seu choro e não iremos descobrir. Podemos, desse modo, apenas lançar hipóteses mal acabadas. É assim que Lucrecia Martel apresenta o início de sua história. Nos pomos nos lugares das duas jovens que cochicham procurando uma explicação para aquilo que acontece. Não é banal. O filme se inicia deixando claro quais sãos as regras. Assim, aos poucos o espectador vai se acostumando a não procurar as respostas na própria película.

Amália e Josefina são as garotas que conversam aos cochichos. Ambas exercem com fervor a fé praticada nas aulas de catequese. Ambas estão a um passo da descoberta de suas sexualidades. Amália mora com a mãe em um hotel antigo e barato. Divide com ela a mesma cama e está acostumada com a pouca privacidade e com o pouco espaço.

Um hotel é um lugar fadado ao efêmero. Tentar transformar esse ambiente de eterna mutação em um lar, é assumir para si relações sociais passageiras e inconstantes. É crer no que não há tempo de se consolidar. É viver acostumado ao entra e sai das faxineiras e aos olhares curiosos dos clientes. Lucrecia Martel escolhe esse ambiente para contar sua história.

Em paralelo, Menina Santa desenvolve a passagem do médico Jano, um psiquiatra que está hospedado ali para participar de um congresso científico. Os dois terão seus caminhos cruzados quando ambos dirigem-se a uma pequena concentração, onde um músico entoa Debussy através de um theremin.

Theremin é um instrumento estranho. Apontado como o primeiro dos eletrônicos, foi criado por volta de 1919 pelo russo Leon Theremin. O Theremin emite notas sem que o músico o toque. É um instrumento não tátil. Suas notas são produzidas a partir de modificações no campo eletromagnético que o aparelho musical gera. E o músico faz suas melodias com as mãos no ar. Esse theremin irá, a partir daí, permear e pontuar a narrativa do filme.

É ouvindo a apresentação desse músico que Amália percebe a aproximação do psiquiatra. Ele se aproveita da aglomeração para encostar seu sexo na garota. Cria-se em Amália um misto de paixão e compaixão.

A inclusão do theremin surge como metáfora. O instrumento está ali para lembrar, para sublinhar sobre o toque, o tato. Para acrescentar à narrativa algo sobre a proibição daquele contato entre o homem e a menina. O som que um theremin entoa tem algo de etéreo, nada parecido com a brutalidade da atitude daquele médico. O theremin surge para falar da contradição do amor que Amália irá sentir, seja um amor sacro ou profano. Lícito pela vontade de redenção cristã-católica que Amália quer impor ao homem; ilícito pelo óbvio desejo sexual da descoberta.

Menina Santa falará sobre o não toque e sobre a descoberta; sobre a ingenuidade das meninas e sobre a perversidade dos adultos. Irá explorar sempre dois eixos de discussão, sempre sem separá-los. A dualidade de Menina Santa permeia não só o seu discurso, mas transborda para sua própria estratégia narrativa.

Logo no início, quando a menina está deitada na cama com a mãe, há um facho de luz do sol que corta o leito. Enquanto que o quarto permanece numa certa penumbra, aquela luz marca com força a presença do dia. É o mesmo sendo dito de outra forma, misturado na mis-en-scène, na ação. Além disso, o sol penetra naquele quarto através de uma fresta. As frestas, por conseqüência, também serão comuns e necessárias ao longo da película. Lucrecia Martel é responsável por uma câmera precisa. A decupagem (modo de enquadrar e mover a câmera) é feita com extremo rigor, porque o olhar da câmera está sempre em busca do que é privado e proibido. Daí a presença das frestas, dos espelhos que refletem ao acaso, das mesas que ocultam o que por baixo acontece. A câmera de Martel parece sempre estar presente ao acaso, parece sempre descortinar o que é privado sem intenção de fazê-lo. Da mesma forma que os sons do filme não se restringem aos seus ambientes.

Nas aulas de catequese, Josefina e Amália estudam a vocação. Amália, compenetrada em descobrir sua missão, acredita que está no médico o seu destino. Toma para si o dever de mudar aquele homem, de salvá-lo. Amália entende que poderá salvá-lo através de seu amor, mais uma vez um conceito que está imbuído de duplicidades e poucas respostas. Outros focos de discussão vão sendo levantados em cada personagem que o filme acompanha. Josefina mantém um relacionamento de descobertas sexuais com um parente próximo. Pode-se entendê-lo como um irmão ou um primo. O roteiro não deixa claro, como se quisesse fazer-nos trabalhar várias questões morais ao mesmo tempo, porque uma coisa é uma jovem e o sexo precoce, outra é o incesto. Para Josefina, no entanto, há pouco (ou nada) de anormal naquele ato. Assim como Amália não vê nada de estranho no seu amor platônico pelo homem, embora façam segredo de seus atos.

Menina Santa vai apresentando cada uma dessas (des)vias morais. Pouco a pouco vai construindo e descontruindo os conceitos. De tal forma que nas seqüências finais, sem perceber, há uma completa empatia do público com o que começa a se descortinar. A mãe Helena, o médico Jano, as garotas Amália e Josefina: intrincados todos numa história de amor, de não toque, de proibições e culpas. No fim, entretanto, sobra-nos as duas meninas que, de tão santas, parecem não perceber os rumos que tudo tomou. Elas estão felizes e livres.

terça-feira, agosto 16, 2005

Casa Vazia

A leveza do silêncio de Kim Ki-duk

Casa Vazia, pessoas vazias. Esta é a metáfora que norteia e inicia o último filme de Kim Ki-duk, cineasta sul-coreano que ficou conhecido por aqui com o anterior Primavera, verão, outono, inverno... primavera . Em Casa Vazia, um homem procura em residências de donos ausentes, um lar ou um cotidiano que, parece, não possui. Escolhe casas ao acaso, apenas com a certeza da ausência de seus moradores. Passa dias nelas. Não as rouba. Parece retirar delas apenas o sentimento de lar. É um lar uma casa sem pessoas? Ao menos ele retira delas os ecos de uma vida alheia. Fotografa-se ao lado de velhas fotos de família; lava as roupas sujas dos moradores em férias; conserta objetos quebrados, numa obsessão que remete a uma troca, como uma espécie de pagamento pelos dias de uma falsa vida que ganha ali.

À primeira vista pode lembrar o politizado Edukators, do alemão Hans Weingartner, mas as semelhanças terminam na primeira impressão. Enquanto Edukators invadia residências para propor um discurso revolucionário, Casa Vazia as invade propondo autodescobrimento. Pode até parecer um filme resposta, porque em Edukators os personagens entravam nas mansões como ato de protesto, em uma espécie de terrorismo psicológico. Casa Vazia também fala das ilusões do mundo contemporâneo, mas o faz sem estardalhaço, sem utilizar-se de manifestos. Além disso, o filme de Kim Ki-duk quer discutir o privado. E o faz com rigor.

Um dia, um erro. Numa das casas, há uma mulher que chora um mau casamento. O erro torna-se um encontro silencioso, uma fuga para ela e uma redenção para ele. Constrói-se aos poucos um relacionamento sem diálogos. A ilusão está na fala, é o que o filme nos diz. A verdade transparece, vai além. A mulher chora a surra que levou do marido, do homem que não mais ama. Cala-se e fecha-se a ele na impossibilidade de enganar(-se). Foge da violência e dos gritos do marido. Segue o homem em suas casas vazias. Ajuda-o a encontrar as residências fechadas, conserta os aparelhos quebrados, lava as roupas, cozinha. Toma para si a mesma busca do homem que entrou em sua casa e o faz ao seu lado. O ama.

Em cada casa que o homem misterioso entra, é possível reconstruir fragmentos da vida que habita ali. Kim Ki-duk faz com maestria uma narrativa silenciosa. Desvenda a história como esse protagonista desvenda as casas em que entra. Fragmentos de vidas expõem-se através de fotografias, vídeos cassetes, roupas, quadros e livros. Ao mesmo tempo, parece que a mis-en-scène que Kim Ki-duk escolhe para o filme é uma auto-referência às próprias descobertas do protagonista: primeiro o silêncio, depois a leveza e a invisibilidade.

Degrau a degrau, esse homem que nada sabemos vai se tornando menos e menos perceptível à medida que o filme transcorre. Torna-se cada vez mais invisível, até parecer um fantasma, uma mera sensação aos moradores das casas que já visitou. Faz isso pelo amor que encontrou naquela mulher.

Se no início ele era furtivo, no fim se torna ausente. Se no início o personagem era uma metáfora para o esvaziamento das pessoas, no fim sua permanente ausência torna-se uma metáfora para a entrega. O filme se subverte. Alcança no extremo de seu conceito uma dimensão paralela para seu discurso, como a ponta do compasso que passa pelo ângulo zero e 360. São os mesmos e diferentes. Anular-se por amor. Entregar-se no amar.