quarta-feira, janeiro 23, 2008

Jogo de Cena


O cinema de Eduardo Coutinho sempre foi voltado, em parte, à discussão do próprio fazer do documentário. O tal do efeito câmera, termo que designa o quanto que a presença de uma equipe de filmagem influencia nas entrevistas, tornou-se freqüente entre os realizadores e a crítica cinematográfica. Porque Coutinho fez escola e porque o seus filmes de conversas cada vez se tornam mais significantes.

Se Coutinho fosse um desenhista, seria possível reconhecer seu trabalho de longe. Bastaria uma olhadela de relance para reconhecer seu traço duro, com contornos fortes, de personagens bem desenhados. E é por isso que Jogo de Cena é um marco, dentro e fora de seu cinema.

O filme, que foi exibido fora de competição durante o Festival do Rio 2007, é uma reinvenção da obra do cineasta. É compreensível que Coutinho esteja buscando outros caminhos, pois toda marca é também uma forma. Observando a sua filmografia mais recente, é possível ver em O Fim e o Princípio uma outra tentativa de reestruturação. Coutinho, nesse filme, queria um documentário livre, sem pesquisa prévia e sem um tema definido. Acabou fazendo um filme peculiar, um filme sobre o filmar.

Agora, com Jogo de Cena, ele retoma à vontade de se recriar.

O filme se passa dentro de um teatro e é filmado sobre o palco. Ao fundo das entrevistadas, sempre estão as cadeiras vermelhas e vazias. É uma inversão de experiência para o espectador, já há tanto acostumado com suas poltronas. Antes, porém, ainda no primeiro plano, é mostrado um anúncio de jornal. É um chamado para um teste em um filme de documentário. Esse é um recurso já usado por Coutinho, que em Santa Marta coloca uma placa na favela, pedindo a quem tivesse o que falar para passar em determinado endereço, onde a equipe ficava de plantão para entrevistar os moradores.

Inicia o filme Jogo de Cena: vemos o anúncio e logo depois um primeiro depoimento. É uma atriz falando sobre o seu trabalho no Nós do Morro, grupo de teatro que ficou famoso por compor o elenco do filme Cidade de Deus. Para o espectador que conhecia a sinopse, surge aí a primeira das muitas dúvidas que o filme irá plantar.

Acontece que Jogo de Cena é um documentário com personagens reais e com atrizes interpretando algumas das pessoas entrevistadas. Nele, estão atrizes nacionalmente conhecidas como Andréa Beltrão, Marília Pêra e Fernanda Torres, além de outras não célebres.

Ao poucos, dessa forma, o filme vai construindo um universo próprio. Sendo um filme sobre o ato de encenar no documentário e sobre o real na ficção, Jogo de Cena irá a cada instante colocar questões ao espectador. Primeiro pondo em dúvida sobre o que é e o que não é real, depois levantando questões sobre o papel do cinema documentário.

Quando se cria uma linguagem nova, é necessário dar tempo ao espectador para ele aprender a ler. É o que acontece em Grandes Sertões Veredas, quando Guimarães Rosa “ensina” ao leitor a linguagem que vai empregar no livro. Guimarães faz isso abrindo um longo prólogo antes de adentrar na sua história propriamente dita. Ele dá tempo para o leitor ir se acostumando aos seus neologismos.

É algo semelhante o que acontece em Jogo de Cena. Coutinho não é didático. Mas ele ensina a melhor assistir o filme. Os primeiros depoimentos (reais e encenados) têm essa função, de ir fazendo o espectador mergulhar na obra. Nesses primeiros depoimentos, o filme apresenta seu foco documental e sua forma de filmar.

Os depoimentos, invariavelmente, giram em torno da maternidade, das dores e do sufoco de ser mãe. São entrevistas tão doloridas, que em certo ponto nos sentimos dentro de uma sessão de psicanálise.

As lágrimas, inclusive, são foco de análise dentro de Jogo de Cena. É Marília Pêra quem comenta com Coutinho que o verdadeiro choro é feito escondido. E por isso ela tentou não chorar ao interpretar uma das personagens do documentário. Já Andréa Beltrão diz que não conseguiu não chorar. Ela achou a história triste demais. Fernanda Torres, ao contrário, se expõe enquanto profissional quando fala que não consegue entrar no papel: “isso está parecendo um teste”, ela diz.

Jogo de Cena representa uma reviravolta importante na obra de Eduardo Coutinho que, com este filme, prova que não falava bobagem ao sempre aconselhar outros realizadores a serem inventivos. É que embora ele tenha sido importantíssimo para o documentário brasileiro, seu cinema se transformou numa espécie de dogma. E dogmas não são bons.

Reinventando-se, Coutinho criou um dos mais importantes filmes nacionais, desde a retomada.

Este texto foi publicado originalmente na Revista Moviola.

Tropa de Elite


Na estréia de Tropa de Elite, no Rio de Janeiro, tinha tapete vermelho, muita imprensa, celebridades distribuindo sorrisos e mais uma penca de gente sem convite vip. Era também a abertura do Festival do Rio.

Dias antes, o filme já estava na mídia. Tropa de Elite é um exemplo inédito do cinema nacional. Foco de uma pirataria sem precedentes, o longa-metagem de José Padilha caiu na boca do povo. Muito se falou. O próprio Padilha escreveu um artigo soltando fogo pelas ventas, pedindo punições e ameaçando até a imprensa, que ele acusava de ter visto o filme também em cópia pirata.

José Padilha e seus distribuidores também ouviram. Foram acusados de, eles próprios, terem desviado as primeiras cópias, o que se transformaria num bem bolado esquema de marketing viral. Estão apurando e parece que algum funcionário da pós-produção vai pagar o pato.

Sem querer entrar nos méritos judiciais, o fato é que Tropa de Elite é um sucesso retumbante. Não tenho notícias de como está a apreciação dos DVDs em outras praças do País. Mas no Rio de Janeiro, a aceitação é estrondosa.

E o que Tropa de Elite tem que despertou todo esse interesse? Quem desembolsou os R$ 10 pela cópia, levou para casa, entre outras coisas, uma refestelação sobre a falta do Estado nas favelas cariocas. Viu ali na sua TV, um filme que se apóia num ódio de classe que assola o Rio de Janeiro e, em graus diferenciados, o restante do País.

O sucesso de Tropa de Elite se pauta no tipo de expressão tão comumente ouvida pelas ruas, “que bandido tem mesmo é que ser morto”. Vide o caso da senhora que atirou na mão do assaltante e, de quebra, recebeu medalha da Câmara dos Vereadores; ou o caso das milícias (grupos paramilitares), que quando chegou à mídia, recebeu aprovação de grandes parcelas da sociedade.

José Padilha já havia explorado o mesmo tema no seu documentário Ônibus 174. Mesmo sendo uma obra documental, o filme tinha um forte viés melodramático. E é no seu clímax, que vemos uma multidão enfurecida querendo linchar Sandro, o seqüestrador do ônibus. Sandro morreria naquela mesma noite, após o fim do seqüestro, provavelmente assassinado pelos policiais.

Há um simplismo generalizado que assola o entendimento da violência e do narcotráfico. O Estado culpa o usuário de drogas, discurso que os policiais de Tropa de Elite não se cansam de repetir. A população, acuada, não quer nada além de tranqüilidade, nem que ela seja alcançada à base de bala.

E embora o filme de José Padilha apresente em algum momento a complexidade da questão, ela não é aprofundada. Aliás, o único policial do longa-metragem que tenta fazer faculdade e é o único dali que problematiza essas relações da violência, é solenimente recriminado pelo narrador, ou seja, pela voz do filme.

Sim, Tropa de Elite tem um narrador. É Wagner Moura (em uma atuação excepcional), que faz o Capitão Nascimento. É a partir da visão dele que o filme irá caminhar. O personagem de Wagner Moura é um homem bem cotado do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope). Mas ele está em crise. Seu filho irá nascer e ele precisa arranjar um substituto para as suas funções.

A partir daí o filme vai mostrar as várias incursões nas favelas, as torturas e os treinamentos dos homens de preto, como são conhecidos os policiais do Bope.

A crise do Capitão Nascimento não é meramente ficcional. Ela reflete um dado pouco debatido, o alto número de suicídios entre policiais. A pressão é gigantesca, os salários baixos, o risco de morte contínuo.

O sucesso de Tropa de Elite também se baseia na exploração de sentimentos primitivos. É o que o cinema norte-americano faz desde que se entende por gente: a divisão clara entre o bandido e o mocinho; a forte vontade de vingança.

Após a estréia do filme na tela de cinema, iniciou-se um debate na mídia ao acusar o longa-metragem de fascista. Não tenho certezas quanto até onde um filme pode ou não ir; até onde é ético apresentar valores que são contrários aos valores dominantes de uma sociedade. O que sei é que Tropa de Elite fez a opção deliberada de explorar um nicho de mercado baseado no ódio. É no ódio de um pelo o outro em que o filme se baseia. E é por isso que ele está fazendo todo o sucesso que está.

Este texto foi publicado originalmente na Revista Moviola.

O Novo Mundo


Apontando a câmera para cima

Quando em O Novo Mundo, filme de Terrence Malick, soam os acordes de O Ouro do Reno, há o encontro da Europa com a América. É a chegada de uma expedição à costa ocidental e o início de uma colonização à base da força. Enquanto Wagner soa seus acordes em busca do que há de mais profundo, a câmera de Malick observa o desconhecer.

Terrence Malick tem um olhar Romântico frente ao mundo. Um olhar pessimista. Malick, autor bissexto, dirigiu quatro filmes ao longo de três décadas. Sua obra é recheada de um invisível que ele busca compreender.

A América intocada é parte dessa compreensão. O Novo Mundo conta a história de Pocahontas, a índia que se apaixona e torna-se mulher do colonizador. Porque voltar a essa história tipicamente americana?

A música que Malick toma emprestado de Wagner é síntese do que vem falando desde, pelo menos, seu filme anterior, o Além da Linha Vermelha. Wagner foi buscar na mitologia alemã o arcabouço para suas óperas. O Ouro do Reno é uma lenda que mistura elemento pagãos e cristãos. É a história de um anel que repousa sob a água. É daí que J. R. R. Tolkien retira seus principais elementos para a construção da sua saga O Senhor dos Anéis. E assim como no romance, o anel é uma representação de poder. Quando ele é roubado, há o desequilíbrio. É uma das grandes representações arquetípicas: o fogo de Prometeu, o fruto do conhecimento. Interessante notar que Wagner terminará sua tetralogia com a ópera Parsifal, que conta a história dos templários. A busca pelo Santo Graal; a necessidade humana de encontrar Deus na terra.

Malick, com seu olhar Romântico, têm questionamentos semelhantes. Em O Novo Mundo, enquanto soam os acordes de Wagner, chegam as caravelas. A música é enorme como aqueles navios; enorme como aquelas árvores que deixavam os homens tão pequenos frente ao mundo. Terrence Malick sabe qual é o tamanho do homem. E mostra-nos apontando a câmera para cima.

Muita morte escoou sangue no sonho do encontro com o divino. Ao longo dos séculos, o Graal se metamorfoseou. Deixou de ser apenas um objeto, virou uma idéia, uma utopia de Éden.

Quando a Europa aprendeu a içar grandes velas e enfrentar os dragões marítimos, o Graal se transformou no Novo Mundo. Europa, berço da civilização, berço do renascimento, motivo do encontro do divino no homem. Essa Europa foi buscar o Paraíso no além horizonte. Essa Europa achou que tinha encontrado a Fonte da Vida nas terras imaculadas, nas regiões que mãos brancas ainda não cavavam, não plantavam. O Novo Mundo era a esperança de um recomeçar, a comunhão com um futuro.

Terrence Malick se apropria dessa utopia de Paraíso na Terra e dessa necessidade que o homem – vira e mexe – tem pelo sublime, pelo arrebatamento. A relação com o sublime, seja pelo medo ou pela admiração, tem a propriedade de fazer o homem ver-se um pouco mais como bicho; encarar-se um tanto mais como ser mortal.

O homem urbano ao olhar para o mundo o faz de maneira diferente. Vivemos em edifícios, voamos sobre as nuvens, cruzamos continentes em poucas horas. Era um olhar diferente na época que o mundo parecia mais gigantesco.

É recorrente para Terrence Malick problematizar a presença do homem, o alongar do tempo para saber mais sobre a dor humana na terra. Em Além da Linha Vermelha, a mesma câmera que mostra as grandes e imaculadas árvores da América de Pocahontas, mostra o que há de intocado e desconhecido para os americanos na Ásia da Segunda Guerra Mundial.

Em ambos os filmes há um estranhamento vísceral com a terra estrangeira. Em ambos os filmes, estrangeiros chegam de barco para tomar uma terra alheia.

Malick parece preocupado sobretudo com o que há de profundo e incompreendido no homem.

Em 2008 Malick quebrará o estigma do diretor de grandes hiatos e lançará Tree of Life. A julgar pelo título, seguirá seus questionamentos acerca da presença humana frente à natureza, frente esse medo e fascínio que o acompanha por toda a obra.

Este texto foi publicado originalmente na Revista Moviola.

sexta-feira, agosto 10, 2007

Conceição - Autor bom é autor morto

Foram necessários dez anos para que cinco alunos (hoje ex-alunos) de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF) conseguissem realizar, finalizar e exibir o filme Conceição – Autor bom é autor morto. Com uma produção precária, os realizadores ousaram sonhar alto e produziram o que até então era visto como impensável. Conseguiram.

Após muito penar, Conceição cooptou a parceria da Riofilmes, que assumiu a distribuição deste que é o primeiro longa-metragem de ficção feito em um curso de cinema. Sua carreira começa de forma modesta, sendo exibido primeiramente no Rio de Janeiro, Niterói e em São Paulo. Nas três cidades, o filme está presente em apenas uma sala de exibição.

Na sua pré-estréia no Rio de Janeiro, Conceição lotou o cinema Odeon, com seus 600 lugares. Arrancou da platéia palmas e urros de empolgação. Ok, o público era formado basicamente por amigos, parentes e alunos da UFF. Era, portanto, um público pré-disposto e receptível. Já na última edição do festival Cine Esquema Novo, realizado em Porto Alegre, o longa-metragem levou o prêmio do júri popular.

Mas pelo o que tudo indica, Conceição terá uma estada breve nas salas de cinema. Não que o filme seja ruim, pelo contrário. Diferente do que muitos esperavam, Conceição é digno de estar nas salas de cinema. Diferente, inclusive, do que o jornal O Globo acha, com seu bonequinho cochilando. O problema é que o longa-metragem é um alienígena frente aos seus pares do cinema nacional.

O filme de André Sampaio, Cynthia Sims, Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento e Samantha Ribeiro nega algumas das principais características do cinema brasileiro pós-retomada: a verossimilhança, o naturalismo e um certo “padrão de qualidade televisivo” que permeia muitas das produções nacionais recentes. Conceição é trash, experimental, irregular. E essas características são o que há de melhor no filme.

Sendo uma obra coletiva, Conceição não é apenas um, mas também muitos filmes. Há nele uma polifonia que às vezes soa radical, às vezes soa confusa. Mas em momento algum desinteressante. Conceição é cinema em extremo. O filme se valida fortemente da metalinguagem e carrega em seus genes uma boa porção do cinema marginal.

Em seu enredo, diretores bebem em uma mesa de bar enquanto elocubram sobre os filmes que pretendem realizar. Os filmes imaginados são apresentados à platéia enquanto eles bebem mais e mais cerveja. São histórias algumas vezes metafísicas, outras poéticas, em geral permeadas por humor negro. Tem a história do personagem que foge desesperadamente de seu algoz (o perseguidor é interpretado pelo cantor Jards Macalé). Há também a história do cara que vende fezes, do cara que tem seu pênis decepado, entre outras bizarrices. Intercalando, há um documentário poético sobre o filme que anônimos gostariam de filmar. Conceição é o filme que esses autores sonharam fazer.

O que ainda não foi dito aqui é que Conceição, além de tudo, é livre, anárquico. Independente da carreira que o filme tiver nos cinemas, Conceição entra automaticamente no panteão dos filmes cults, dos filmes utilizados como referência quando outros jovens realizadores estiverem discutindo seus respectivos projetos em outras mesas de bar.


quinta-feira, junho 28, 2007

Cão sem Dono

Beto Brant parece estar se afastando paulatinamente do cinema policial ou mesmo de histórias com enredos articulados, dramáticos. Se em Crime Delicado, seu penúltimo filme, já se via isso claramente, neste Cão sem Dono ele chegou a lugares não antes navegados em seus quatro longas-metragnes anteriores. Ao lado de Renato Ciasca, co-diretor, Beto Brant apostou em um filme pequeno, discreto.

Cão sem Dono está ao lado de uma parcela de filmes do cinema nacional que prima por uma representação mais íntima para contar suas histórias. Nestes filmes não há aquela montanha russa de emoções tão propalada nos manuais de roteiro. Talvez o que mais importe a ser observado nessas obras, seja a relação formal que é estabelecida em suas narrativas. São filmes, aliás, de narrativas escassas, em que o tempo é diluído.

Cão sem Dono é um desses filmes em que a câmera parece ouvir o cochichar dos seus personagens. Longas-metragens recentes como O Céu de Suely, Proibido Proibir ou Cinemas, Aspirinas e Urubus são outros exemplos dessa representação íntima, desse modo de ver e fazer a imagem em movimento.

Adaptado do romance Até o Dia em que o Cão Morreu, escrito pelo porto-alegrense Daniel Galera, o filme é uma história sobre solidão, sobre a dor de se perder: perde-se a si e ao outro. O cão sem dono é tanto o cachorro vira-lata que Ciro, o protagonista, cuida, quanto o próprio personagem central. O longa-metragem trata sobre o valor que damos às coisas e às pessoas, sobre os preconceitos que temos frente aos outros. É, no entanto, a presença da morte, sempre ela, que nos faz repensar o real valor de cada um.

No enredo, Ciro pouco a pouco se apaixona por Marcela, uma aspirante a modelo. São dois mundos estranhos, um ao outro. Ciro com sua vida de intelectual em auto-destruição; Marcela em suas buscas pelo glamour.

É um filme cru, que explora os silêncios, os constrangimentos, as pausas nos diálogos para compor seu universo. Seus diálogos parecem não terem sido escritos, ficando aos improvisos a vida dos personagens. O interessante é que as escolhas de Beto Brant e Renato Ciasca mostram um caminho de rigoroso experimento na condução do enredo, já que o texto falado é em muitos momentos desprovido de função dramatúrgica. É que o dito naturalismo no cinema está submetido a regras que as conversas do dia-a-dia não se aproximam. Contraditoriamente, para se escrever algo que soe banal, natural, é necessário escrever algo não natural, algo que esteja alinhado com uma certa construção da linguagem.

Um bom exemplo são as conversas de Ciro e seu pai na mesa de almoço. Ou ainda o modo que Ciro fala com o porteiro de seu prédio, ao descobrir que ele é pintor. Essa “não dramaturgia” funciona tão bem, que o espectador parece compartilhar da situação, mas não apenas como observador (o que é comum no cinema), mas como alguém que já estivesse passado por aquilo. É algo familiar. Engraçado é que essa é uma das característica e vocações do cinema-clássico narrativo, mas é em filmes que negam até certo ponto seus ditames, que esse efeito é alcançado. É provável que isso seja sinal de um esvaziamento de uma linguagem padrão. Se não esvaziamento, pelo menos um desgaste.

Em outras palavras, o que Cão sem Dono tem a coragem de experimentar, é a sua aproximação com o hiper-realismo. É como observar uma tela de Edward Hopper, pintor nova-iorquino. São pinturas amarguradas, que com uma técnica apurada, quase fotográfica, procurava mostrar a solidão urbana. Muitas vezes, Edward Hopper mostrava esse estar só através de pessoas comuns: atendentes de bares, consumidores, anônimos em suas casas ou calçadas.

Assim é em Cão sem Dono, que explora os universos tristes de uma garota que quer ser modelo e de um tradutor de russo que não tem nenhum Dostoievski a ser traduzido. Há também o cão vira-lata, que todos os dias entra em casa quando o porteiro o leva de elevador.

sábado, maio 05, 2007

Proibido Proibir

Era 1968. A revolução que havia sacudido a França em maio daquele ano modificava o jeito de pensar da juventude de esquerda no mundo inteiro. Em setembro do mesmo ano, Caetano Veloso, no Brasil, subia ao palco acompanhado pelos Mutantes. Guitarras em punho, ouviram uma das maiores vaias da história da música brasileira. Se não a maior, pelo menos a mais célebre. Engraçado, ele cantava Proibido Proibir. As vaias eram contra as guitarras, que no imaginário da época maculavam a verdadeira MPB, eram sinal de alienação cultural. O resultado é que Caetano desfiou um discurso exaltado, gravado posteriormente em disco.

Hoje, o slogan “proibido proibir” soa banal. É que o mundo mudou, perdeu as utopias ao longo dessas quase quatro décadas que nos separam do maio francês. O Brasil deixou para trás sua ditadura militar. E é nesse entendimento que reside a primazia do segundo filme de Jorge Durán. Um triângulo amoroso que usa como base a alienação da juventude carioca frente aos dramas e infortúnios sociais vividos por aqueles abaixo da linha de pobreza.

Proibido Proibir mostra de perto o convívio de três estudantes universitários, Paulo (Caio Blat), Leon (Alexandre Rodrigues) e Letícia (Maria Flor). Paulo cursa Medicina; Leon, Ciências Sociais; e Letícia, Arquitetura. São personagens típicos da fauna acadêmica. O de Caio Blat não leva a vida muito a sério, não tem um tostão e gasta o que não tem com cerveja e drogas. O seu amigo, Leon, é engajado, faz pesquisas de campo em comunidades carentes e se ressente porque isso é pouco, ínfimo. Letícia, namorada de Leon, é uma patricinha hippie, dessas que se vê muito por aí.

É acompanhando o relacionamento desses três, que o filme vai radiografar o estado das coisas. Ou melhor dizendo, o pensamento médio do jovem universitário frente a sua cidade, frente ao Rio de Janeiro. Mas é ao longo do filme, que a cidade e sua periferia vão trazer as modificações que eles achavam não serem necessárias para si mesmos. É quando a favela invade o filme, quando os conflitos dos personagens os obrigam a tomar decisões graves que os colocam em questões morais que ultrapassam seus padrões de conduta.

Um ponto interessantíssimo de Proibido Proibir é a capacidade de trazer o documental para dentro da ficção sem que soe falso ou professoral. Do mesmo modo, o retrato da periferia não tem nada de glamourizado, até porque as escolhas das locações primaram por geografias não conhecidas, favelas que ninguém fora dali costuma pisar, nem o Estado.

Por outro lado, Proibido Proibir parece ser um filme de outro tempo. Sua cara, sua mise-en-scène, é de um cinema que já tivemos e que não se encontra mais costumeiramente nas novas produções. Isso não é necessariamente ruim, talvez o problema esteja na pasteurização da imagem que o cinema nacional atual tem como padrão de qualidade, vide Os Dois Filhos de Francisco, Cidade de Deus, O Homem do Ano, entre tantos outros.

Talvez a conseqüência dessa estética seja o fato de que Jorge Durán não dirigia um longa-metragem há 20 anos. O anterior foi A Cor do seu Destino, de 1986. Mas Durán não é cineasta de poucos filmes. Na verdade, sua grande contribuição ao cinema se dá enquanto roteirista. São deles roteiros de filmes importantes como Pixote – A Lei do Mais Fraco, Lúcio Flávio – O Passageiro da Agonia e O Beijo da Mulher Aranha.

Existem algumas lacunas presentes em Proibido Proibir, como as atuações que oscilam e que em alguns trechos dão pouca credibilidade ao trio; ou como em alguns poucos momentos (principalmente nos minutos iniciais) em que os diálogos surgem um tanto pueris, às vezes didáticos. No entanto, ultrapassados esses problemas, o filme demonstra possuir momentos de força e beleza dignos de estarem na tela de cinema. Um deles é a seqüência em que a personagem de Maria Flor caminha pelo Rio e estuda sua arquitetura. O filme trabalha uma metáfora da degradação social/moral através das fotografias feitas por Letícia. Ela fotografa as ruínas, o pouco zelo com a história da cidade.

Uma outra bela seqüência é a que conclui o filme, arrebatadora. Mas essa eu deixo para vocês.

domingo, março 18, 2007

Babel

Da dor à redenção

Quando Amores Brutos estreou no Brasil, Alejandro Iñarritu estava apenas começando sua carreira internacional. Após seis anos e mais dois longas, agora o seu nome é uma assinatura. Uma assinatura tão forte que permitia prever o que Babel, seu novo filme, traria para as salas de cinema: um emaranhado de histórias que se chocam umas às outras, fragmentadas, sem ordem cronológica; tragédias e respectivas dores, muitas dores.

Iñarritu alcançou algo muito complicado para os nossos dias de blogs, fotologs, youtubes… conseguiu imprimir uma marca, deixar claro do que trata sua assinatura. Diante de toda hiperprodução de informações, do surgimento de tantos gênios efêmeros, da magnitude do descartável, Iñarritu conseguiu estabelecer seu nome. Por outro lado, toda a necessidade de arrebatamento tão típica do mundo contemporâneo – essa busca pela catarse em cada byte de e-mail, em cada nova obra de arte ou publicidade – trabalha contra ele.

É necessário uma análise com alteridade: o tão diagnosticado caos contemporâneo, a aceleração das pessoas e suas pressas, a internet e o mundo de informações e entretenimento que estão disponíveis aos mais brandos cliques, causam esse estranhamento nas coisas que não mudam. Babel é o que já sabíamos que seria. Mas há um problema real nisso? É verdadeiramente depreciativo reconhecer em um autor o seu estilo? O certo é que essa pós-modernidade é tão estranha, que cobra a reinvenção de autores que têm como marca as constantes mudanças de estilo. É o caso de diretores como Quentin Tarantino ou Steven Soderbergh, com seus filmes híbridos, mutáveis.

Muito embora a forma do filme já fosse previsível, Iñarritu conseguiu harmonizar de tal forma a não cronologia, com tanta maestria, que é surpreendente ao olho atento acompanhar o desenrolar da fita. Aliás, não há espectador passivo nas platéias de seus filmes. O paradigma do espectador semi-adormecido – imerso na ilusão do cinema clássico-narrativo, aberto a um mundo fílmico sólido, sem brechas para esse despertar – é completamente negado pelo cinema de Iñarritu. Seus filmes obrigam que a platéia esteja atenta, refazendo em seus pensamentos uma segunda montagem que permita, assim, a compreensão linear da obra. E é assim desde Amores Brutos.

Amores Brutos, no entanto, foi uma experiência mais linear. O filme se subdividia em outras histórias a partir de um acidente e mantinha alguma coerência com a forma escolhida para o filme. Já em 21 Gramas, segundo filme do diretor, houve uma radicalização no experimento, quando Iñarritu fragmentou cronologicamente e geograficamente o filme a ponto de muitos espectadores saírem das salas sem terem compreendido bem o que havia assistido. O mais irônico é que em 21 Gramas, é apenas esse jogo de montagem que é responsável por algo peculiar no filme. Se fosse editado de forma linear, o que veríamos seria um melodrama típico.

O termo melodrama (ou pelo menos algo desse conceito) é essencial para o entendimento do cinema de Alejandro Iñarritu. Isso porque ao que seus filmes indicam, o diretor acredita na dor/tragédia como um caminho para a redenção. Babel é constituído de quatro núcleos e neles, em cada um deles, há sofrimentos profundos. Em linhas gerais, o melodrama define uma narrativa calcada no sofrimento e na impossibilidade de fuga desse sentimento. Em seu cinema, os personagens parecem sofrer para poder entender qual é seu papel no mundo. E é isso que acontece nos quatro núcleos de Babel.

São quatro histórias, cada uma contada em uma língua diferente. Assim como em seus filmes anteriores, Iñarritu utiliza coincidências para uni-las. Estados Unidos, México, Marrocos e Japão foram os cenários escolhidos para construir essa Babel. E o que une essas geografias é um rifle. É como se o filme, na verdade, estivesse contando a história desse rifle. Mais profundamente, entretanto, vê-se que o mote do filme não é simplesmente a dor que une essas histórias, e sim a intolerância que está presente nas fronteiras, entre os povos de um mundo globalizado.

domingo, fevereiro 18, 2007

O Céu de Suely


Iguatu é uma cidade de 92 mil habitantes cravada no centro do sertão cearense. É para lá que Hermila se desloca nos instantes iniciais de O Céu de Suely, segundo longa-metragem de Karim Aïnouz. Ela chega de ônibus, trazendo no braço o peso de um filho pequeno e da bagagem do que restou de dois anos em São Paulo.

Assim como em Madame Satã, primeiro filme do diretor, O Céu de Suely vai se construir na proximidade da câmera com sua protagonista, renegando artifícios puramente dramatúrgicos, focando-se no que há de essencial para a compreensão da personagem. Mas Hermila não tem a histeria de Madame Satã e se em seu primeiro longa-metragem Karim Aïnouz oscilou o foco de seus planos para acentuar a ira do protagonista, nesse segundo há uma delicadeza que busca os detalhes, as texturas da região, a dor de uma Hermila muito nova para ter um filho, grande demais para permanecer em sua pequena Iguatu.

Hermila retorna para viver ao lado de uma tia e de sua avó, enquanto espera a chegada do marido que permaneceu em São Paulo. Mas ele não vem e logo ela descobre que foi abandonada. A personagem, então, decide partir novamente, mas para arrecadar dinheiro para sua viagem, promove uma rifa na qual o prêmio é “uma noite no paraíso”. Hermila decide se prostituir por uma noite apenas, em troca de uma nova chance de estar longe de Iguatu. É daí que vem o título do longa-metragem, pois ela ao vender a rifa escolhe o pseudônimo Suely.

A protagonista é interpretada pela atriz pernambucana Hermila Guedes que, assim como os outros atores, empresta seu nome para a personagem. A escolha pelo batismo foi uma tentativa de aproximar os atores dos seus papéis, de deixá-los imersos na vida de seus personagens. Na verdade, esse foi apenas uma pequena parte da longa preparação feita por Fátima Toledo. No trabalho de preparação, os atores viveram por dois meses como moradores de Iguatu, usavam as roupas do próprio filme e tiveram que se mesclar à cidade, em um movimento de imersão que resultou em atuações orgânicas e no prêmio de melhor atriz feminina no Festival do Rio de 2006. Mas as interpretações de O Céu de Suley não são resultado apenas do trabalho de preparação de elenco, mas também da persistência de Karim Aïnouz em privilegiar as atuações. Além dessa imersão, a estrutura do filme foi montada sempre para servir aos atores. Nas filmagens, por exemplo, a própria claquete foi abolida, no intuito de afastar o maior número de elementos que pudessem interferir no trabalho dos atores.

O Céu de Suely é um filme de sensações. Embora nele seja possível identificar todo um esforço de roteiro para levar o espectador a acompanhar um enredo com começo-meio-e-fim, o que sobressalta é a sua forma de olhar. Um olhar sem julgamentos que está muito mais a serviço da personagem do que de maneirismos cinematográficos. Quando Karim Aïnouz deixa que a cidade interfira na linha narrativa do filme, é isso que está fazendo. Porque ele se apropria de um discurso imagético e auditivo que é característico da região e o faz a favor do filme. Um outro exemplo é a escolha da trilha sonora, que pontua o longa com músicas do chamado tecno-brega. São versões de músicas pops estrangeiras em ritmo de forró.

De certa forma, O Céu de Suely está localizado ao lado de outras produções recentes do cinema nacional. Aliás, produções que de algum modo tiveram participação do próprio Karim Aïnouz, como Cidade Baixa, de Sérgio Machado e Cinema Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes. Ambos os filmes têm a participação do diretor de O Céu de Suely no roteiro. O que emparelha esses filmes numa linha próxima é a vontade de buscar um cinema que não esteja propriamente ligado a uma narrativa no qual o conflito é a chave para o princípio e o fim. São filmes que também procuram não contar para melhor contar.

É óbvio que nada disso é novidade na historiografia do cinema, mas é interessante notar como de tempos em tempos há movimentos de idas e vindas e como se prestarmos atenção, é possível antever a chegada de outros nesta mesma linha.

A proximidade que o Céu de Suely tem com um modo de discurso fílmico não o subjuga em nenhum momento. Pelo contrário, os não ditos, os silêncios, a delicadeza dessa produção é o grande trunfo que os 90 minutos de filme dão ao público.