quinta-feira, junho 28, 2007

Cão sem Dono

Beto Brant parece estar se afastando paulatinamente do cinema policial ou mesmo de histórias com enredos articulados, dramáticos. Se em Crime Delicado, seu penúltimo filme, já se via isso claramente, neste Cão sem Dono ele chegou a lugares não antes navegados em seus quatro longas-metragnes anteriores. Ao lado de Renato Ciasca, co-diretor, Beto Brant apostou em um filme pequeno, discreto.

Cão sem Dono está ao lado de uma parcela de filmes do cinema nacional que prima por uma representação mais íntima para contar suas histórias. Nestes filmes não há aquela montanha russa de emoções tão propalada nos manuais de roteiro. Talvez o que mais importe a ser observado nessas obras, seja a relação formal que é estabelecida em suas narrativas. São filmes, aliás, de narrativas escassas, em que o tempo é diluído.

Cão sem Dono é um desses filmes em que a câmera parece ouvir o cochichar dos seus personagens. Longas-metragens recentes como O Céu de Suely, Proibido Proibir ou Cinemas, Aspirinas e Urubus são outros exemplos dessa representação íntima, desse modo de ver e fazer a imagem em movimento.

Adaptado do romance Até o Dia em que o Cão Morreu, escrito pelo porto-alegrense Daniel Galera, o filme é uma história sobre solidão, sobre a dor de se perder: perde-se a si e ao outro. O cão sem dono é tanto o cachorro vira-lata que Ciro, o protagonista, cuida, quanto o próprio personagem central. O longa-metragem trata sobre o valor que damos às coisas e às pessoas, sobre os preconceitos que temos frente aos outros. É, no entanto, a presença da morte, sempre ela, que nos faz repensar o real valor de cada um.

No enredo, Ciro pouco a pouco se apaixona por Marcela, uma aspirante a modelo. São dois mundos estranhos, um ao outro. Ciro com sua vida de intelectual em auto-destruição; Marcela em suas buscas pelo glamour.

É um filme cru, que explora os silêncios, os constrangimentos, as pausas nos diálogos para compor seu universo. Seus diálogos parecem não terem sido escritos, ficando aos improvisos a vida dos personagens. O interessante é que as escolhas de Beto Brant e Renato Ciasca mostram um caminho de rigoroso experimento na condução do enredo, já que o texto falado é em muitos momentos desprovido de função dramatúrgica. É que o dito naturalismo no cinema está submetido a regras que as conversas do dia-a-dia não se aproximam. Contraditoriamente, para se escrever algo que soe banal, natural, é necessário escrever algo não natural, algo que esteja alinhado com uma certa construção da linguagem.

Um bom exemplo são as conversas de Ciro e seu pai na mesa de almoço. Ou ainda o modo que Ciro fala com o porteiro de seu prédio, ao descobrir que ele é pintor. Essa “não dramaturgia” funciona tão bem, que o espectador parece compartilhar da situação, mas não apenas como observador (o que é comum no cinema), mas como alguém que já estivesse passado por aquilo. É algo familiar. Engraçado é que essa é uma das característica e vocações do cinema-clássico narrativo, mas é em filmes que negam até certo ponto seus ditames, que esse efeito é alcançado. É provável que isso seja sinal de um esvaziamento de uma linguagem padrão. Se não esvaziamento, pelo menos um desgaste.

Em outras palavras, o que Cão sem Dono tem a coragem de experimentar, é a sua aproximação com o hiper-realismo. É como observar uma tela de Edward Hopper, pintor nova-iorquino. São pinturas amarguradas, que com uma técnica apurada, quase fotográfica, procurava mostrar a solidão urbana. Muitas vezes, Edward Hopper mostrava esse estar só através de pessoas comuns: atendentes de bares, consumidores, anônimos em suas casas ou calçadas.

Assim é em Cão sem Dono, que explora os universos tristes de uma garota que quer ser modelo e de um tradutor de russo que não tem nenhum Dostoievski a ser traduzido. Há também o cão vira-lata, que todos os dias entra em casa quando o porteiro o leva de elevador.

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