sexta-feira, dezembro 09, 2005

Cinema, Aspirinas e Urubus


Perdendo países

Se viajar é perder países, como dizia Pessoa, partir é entrar em luto. Deixar as raízes culturais, abandoná-las para só encontrá-las em si mesmo, na memória e na nostalgia. Cinema, Aspirinas e Urubus, longa-metragem de estréia do pernambucano Marcelo Gomes, trata do encontro de dois viajantes: Ranulpho, que deixa o pequeno povoado em que mora no sertão, e Johann, alemão que cruza as estradas de terra do interior pernambucano. Ranulpho quer chegar ao Rio de Janeiro, terra prometida; Johann dirige um caminhão e vende aspirinas nas cidades onde pára.

No Sertão de Marcelo Gomes, o Sol e a noite cegam. Mis-en-scène de um Nordeste arcaico, que pouco sabia da Segunda Guerra noticiada pelo rádio. Metáfora do próprio encontro de dois viajantes tão distantes e próximos. Em 1942 Ranulpho desistia do Sertão do mesmo modo que Johann já havia desistido de sua Alemanha nazista. Dois personagens em metamorfose, perdendo pequenos países próprios.

O primeiro plano de Cinema, Aspirinas e Urubus é didático e chave para o entendimento da jornada dos dois personagens. Um primeiro plano totalmente branco, extenso, que pouco a pouco vai nos mostrando detalhes de um retrovisor de um veículo e de seu motorista, como se os olhos imersos no escuro do cinema precisassem de tempo para se acostumar à claridade seca daquela região.

Um alemão que está perdido pelas estradas esburacadas, que trava contato com sertanejos curiosos por ver um veículo, por ver um estrangeiro: um pequeno recorte da industrialização que começava a se espalhar pelo país de Getúlio Vargas. É aí que se dá o encontro dos dois protagonistas.

Inicia-se o road-movie de Marcelo Gomes, mesmo sendo esse um road-movie estranho. Um filme de estrada em que a câmera não acompanha a geografia, mas prefere ficar presa a seus personagens, na sombra da boléia do caminhão e próxima às velas e lamparinas que lutam contra a noite. O Sertão de Aspirinas é tão seco e duro que é pouco visto. É tão arisco, que não é permitido vê-lo em sua totalidade. As imagens surgem sempre esbranquiçadas, quase monocromáticas. Tudo é cor de terra.

Cinema, Aspirinas e Urubus surge para romper com um naturalismo-classe-média que reina na dita retomada pós Collor, surge como um paradigma desse cinema contemporâneo brasileiro. Ao lado de Amarelo Manga e Baile Perfumado, ratifica o frescor criativo pernambucano e põe seu nome na História do cinema brasileiro.

Mais a fundo, o filme de Marcelo Gomes trata não apenas do luto que é deixar suas raízes, mas da busca de uma nova identidade para aquele que se exila. Por isso é tão importante o encontro do alemão e do sertanejo, porque é no embate com o diferente que vai se delinear o novo ser que nasce. Se a viagem é a perda de países e, do mesmo modo, uma forma subjetiva de morte, o encontro é um renascer modificado, é também um exercício de alteridade. Talvez por isso, os road-movies carreguem consigo o clichê de ser uma metáfora para a transformação ou redenção de seus personagens, de redescoberta.

E as redescoberta acontecem para os personagens à medida que vão exibindo seu cinema publicitário aos sertanejos; à medida que estreitam laços de cumplicidade e descobrem no outro um laço de vida e suporte. É um filme em que tudo isso é dito sem muitas palavras, na lentidão do seu tempo diegético e na força física de suas atuações. É dito quando um povo de uma pequena cidade se assombra e se encanta com a primeira projeção cinematográfica de suas vidas (improvisada, ao ar livre). É dito nos muitos silêncios dos personagens.