quarta-feira, novembro 16, 2005

Morro da Conceição


O tempo do silêncio

Eduardo Coutinho é uma referência obrigatória quando o assunto é o documentário contemporâneo brasileiro. Na verdade, Coutinho balizou no Brasil o gênero cinematográfico, com carreira iniciada no seu clássico Cabra Marcado para Morrer, terminado em 1981. Coutinho fez escola e conseguiu abrir, mesmo que parcamente, o mercado brasileiro ao documentário. Mas sua contribuição mais importante está mais na forma sugerida do que no respaldo reconhecido pelo público pagante. E aí há um paradoxo, uma espécie de encruzilhada causada por um modo extremo de se fazer documentários. Nos filmes de Eduardo Coutinho, a intervenção autoral não se esconde. Sem querer reproduzir um discurso ingênuo, da imparcialidade ou da objetividade frente ao foco do estudo, a verdade é que em filmes como Babilônia 2000 e Edifício Máster, o autor se apresenta para tentar a maior distância possível do seu tema. Ele não nega a própria presença, ele não nega a presença da câmera, ele não tenta esconder que há nesse ritual de entrevistador-câmera-entrevistado uma conduta padrão, tanto por parte do realizador, como por parte de quem cede sua imagem, sua voz, seu discurso. É uma radicalização da transparência: é dizer ao expectador, “você está assistindo a um documentário, e nele tudo e nada é verídico”.

O cinema de “conversas”, como tem sido definido essa escola do documentário, extrai desses discursos, desses depoimentos, o fio condutor da obra. E foram essas as escolhas de Cristiana Grumbach, em seu longa-metragem de estréia, Morro da Conceição. Não por coincidência, Cristiana vem trabalhando com Eduardo Coutinho desde 1999, desde Santo Forte. E embora a obra de Coutinho pontue sua carreira, e reflita-se inevitavelmente neste Morro da Conceição, espertamente Cristiana não o nega, mas soma-o às suas propostas de desvendar o tempo, a finitude. Morro da Conceição recolhe depoimentos de oito dos moradores mais antigos dessa que é uma comunidade incrustada no Centro do Rio de Janeiro. Um morro que nasceu comunidade graças à zona portuária, graças, em grande parte, a portugueses que migraram para o Brasil no fim do século XIX e início do século XX. São desses descendentes que o documentário vai ouvir a história de um Rio de Janeiro que não conhecia a balbúrdia da avenida Presidente Vargas, os altos prédios da Rio Branco ou a violência que assusta os noticiários de TV.

O recorte escolhido por Cristiana para Morro da Conceição é o do humano, mais do que o da arquitetura. Embora a localidade, carregada com o peso do tombamento histórico, resvale um valor cultural importante e que não poderia deixar de sê-lo retratado, o documentário prefere revelar pessoas. O morro surge, então, como metáfora para uma discussão maior, morte e vida, finitude, decrepitude. Conceição de fachadas tombadas, mas de interiores modificados. É como seus entrevistados, que são a memória oral de um tempo, mas escondem em si relatos singulares, como é singular cada vida, mesmo com suas intercessões. No filme, os entrevistados vão construindo passo a passo um documento sobre um Rio de Janeiro antigo; um relato sobre a memória familiar; expectativas sobre o que se termina.

Morro da Conceição se inicia com o nascer do sol, que ilumina os seus prédios antigos. Terminará no crepúsculo, dando a ilusão de um dia retratado em pouco mais de uma hora; remetendo a um histórico de filmes que buscam em sua narrativa essa idéia de um recorte de um dia qualquer: Berlim, Sinfonia de Uma Metrópole, de Walther Ruttmann; ou o recente Suíte Habana, de Fernando Pérez, entre tantos outros. Recortar uma vida em um dia. Talvez resida nesse intuito uma busca por um lirismo, um estratagema poético. A idéia de que o que for humano é válido de se retratar. Em um dia qualquer, em uma escolha a esmo, é possível encontrar coisas importantes a serem ouvidas/vistas. Intercalando esse “dia”, Cristiana apresenta imagens fixas de ruas do Morro da Conceição. São longas, mais extensas do que os olhos do público são acostumados a ver no cinema. Mas têm um fundamento para tal, porque o filme, dessa forma, pontua o tempo do silêncio.

Entre esses “silêncios” estão os depoimentos. Neles, ouvimos Dona Iria, Seu João, Dona Alzira, Dona Maria Amélia, Seu Feijão, Seu Chapéu, Dona Duda e Dona Mida. Seus discursos às vezes são de nostalgia, às vezes de encantamento com o presente; às vezes falam do inevitável deslocamento que o passar dos anos provoca nos mais velhos, às vezes esse deslocamento dá ao expectador uma idéia quase íntima do que é viver uma cidade sendo transformada ao longo de oito ou nove décadas. O respeito com que Morro da Conceição trata seus entrevistados é, talvez, o melhor presente que a platéia pode dele esperar. É um respeito de quem ouve histórias na sala de jantar e quer aprender sobre um passado que já não existe mais. E o passado, sem exceção, é para todos os personagens um certo motor de propulsão, que está ali consolando e amenizando o medo do fim.

Em Morro da Conceição, há uma poesia que se esmera entre as entrevistas, que se estampa nas fotografias antigas e se apresenta nas escolhas de uma diretora consciente de seu trabalho. A simplicidade desse documentário parece ser a razão motivadora de uma busca lírica. Morro da Conceição é a prova de que onde há vida, há boas histórias. O problema, o único problema, é imaginar que o cinema documentário deva seguir esse padrão como meta, como único caminho possível. Não é verdade e já há exemplos brasileiros que demonstram que não.

Voltando a Eduardo Coutinho, ele próprio condena essa visão generalizada de que seu exemplo é o melhor exemplo. Como se existisse um “Dogma” brasileiro sobre os documentários, que proibisse a narração, a música, ou qualquer intervenção autoral que pudesse ser um caminho para o pecado da manipulação. Há aí uma imensa discussão ética sobre o que é e não é justo de manipular, sobre até onde o rótulo “documentário” suporta as técnicas da ficção, sobre até onde as ferramentas do cinema clássico-narrativo podem ser incorporadas no cinema documental. O certo é que todas essas fronteiras já foram quebradas, no entanto sem conseguir esgotar o princípio da questão. E a cada passo renovam-se as mesmas dúvidas.