Cem anos de areia
O plano é longo, evasivo. Um plano geral que espera desbravadores de um deserto atravessá-lo de ponta a ponta. Um pequeno grupo de pessoas, carregando mantimentos e animais, lutando contra o cansaço da caminhada, contra o sol e a areia que a tudo dificulta. A saga começa em 1910, nos Lençóis Maranhenses, e será lá que terminará, décadas depois, num círculo sem saída. Casa de Areia, quarto filme de Andrucha Waddington, é uma alegoria da solidão e da ilusão humana, mesmo que para tal vá tão longe para contar sua história.
No momento seguinte estão Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, mãe e filha (em vida e em enredo), exaustas, mas ainda caminhando contra a areia e o sol. Daquela primeira monotonia, de espaços largos e vasto, partiu-se para um close, que agora começa a detalhar pela contradição os personagens de tal desventura. Lembra a chegada dos Buendia na terra prometida de Macondo, em Cem Anos de Solidão, do nobel Gabriel Garcia Marquez. A referência é tão clara que Fernanda Montenegro e Fernanda Torres se alternarão nos papéis durante o restante do filme. A medida que a filha envelhece, a personagem é assumida pela Fernanda Montenegro e a neta pela Fernanda Torres. As trocas de papéis acompanharão a fita durante as gerações em que a lente focará a história. Em Cem Anos de Solidão, recurso semelhante é utilizado quando Gabo mistura os nomes dos filhos e dos netos e, com isso, alcança uma sensação de repetição no círculo de nascimentos e mortes da família.
Neste primeiro momento do filme, Fernanda Torres está a cargo do papel da filha prometida e casada com um homem mais velho. O marido é interpretado surpreendentemente por Ruy Guerra, diretor de filmes como Os Fuzis e Estorvo. É um homem de algumas posses, que viu nos Lençóis a cobiça de uma vida melhor, o sonho feudal de terras, a descendência patriarcal. Ainda estamos nos primeiros minutos de Casa de Areia e tudo isso já foi entredito, exposto entre os fotogramas. Todas as referências sociais do personagem são apenas intuídas, assim como grande parte das informações contidas no longa-metragem. O filme ainda tem participação de Seu Jorge - o músico que deu o ponta-pé no grupo Farofa Carioca e interpretou Mané Galinha em Cidade de Deus - e Luiz Melodia, aquele da famosa Magrelinha.
Sobre uma duna dos Lençóis Maranhenses, uma casa é construída pelos empregados para abrigar a família no meio do nada, mesmo sob a relutância da esposa, que preferiria ir embora. Mesmo ao saber da gravidez da mulher, o patriarca não cede. Quer que o filho nasça ali, profetiza-o homem e espera o dia em que o primogênito terá forças para ajudá-lo na lida do dia-a-dia. Mas o marido morre e o filho nasce mulher. Com a morte, os empregados fogem, roubam mãe e filha e deixam-nas para trás.
A distância, a gravidez, depois a filha muito nova, a mãe velha e o quase total isolamento impedem que elas partam. Ao longo das décadas seguintes haverá sempre uma vontade visceral de partir do nada para algum lugar. No entanto, sempre permanecerá essa impossibilidade. Mas a vontade em alguns casos se apazigua, acomoda-se, e a viúva que tanto lutou para fugir se vê velha e desistente. E no retorno do círculo, é a neta, a filha do explorador Vasco, que toma para si a perspectiva de viver longe dali.
Em Casa de Areia, os meses e os anos correm sem serem vistos ou anunciados. Não há festas para celebrar qualquer data, qualquer aniversário ou novo ano. Há apenas uma aparente mas bem solucionada confusão na troca de papéis que demarcam o avanço dos anos, marcada por elipses precisas, como a que mostra num salto de mais de duas décadas, aviões partindo para a Segunda Grande Guerra.
O som, que pouco ecoa além do vento que sopra a areia, também é um personagem importante na história. Laborioso foi o feito de construir o som em Casa de Areia, mostrar as nuances de cada uivo e o silêncio como parte integrante dessas solidões. Logo no início do filme, vê-se uma fotografia em que a primeira personagem de Fernanda Torres está sentada ao lado de um piano. O cuidado com que trata a foto nos diz muito sobre a falta da música em sua vida, sobre os acordes que não mais ouvirá. O silêncio cria mais um dado para a compreensão da personagem, fazendo um arco dramático para o fim do filme, que nego-me a escrever, não pela convenção que dita não entregar os desfechos, mas, sim, por tratar-se de um momento de rara poesia.
A alegoria de Casa de Areia é procurar no areal dos Lençóis uma metáfora para as buscas do homem. Uma busca existencial, que tanto está refletida/projetada em avanços científicos como na arte; tanto no chope da esquina quanto nas salas das universidades. Casa de Areia trata da ilusão e da finitude do ser; trata da solidão urbana, mesmo sem pisar numa avenida de concreto. E para não citar mais uma vez o eterno retorno de Nietzsche, melhor lembrar de Antes da Chuva, de Milcho Manchevski, que diz, “o tempo não espera, porque o círculo não é redondo”.
terça-feira, julho 26, 2005
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