terça-feira, julho 26, 2005
Abril Despedaçado
Walter Salles, mesmo por trás das câmaras, conseguiu virar uma celebridade do cinema. Diretor do aclamado e premiado "Central do Brasil", agora ele volta às telas com "Abril Despedaçado". O novo filme é o mais maduro de sua carreira ficcional.
Mas a verdade é que "Central..." passa longe de "Abril...". São histórias diferentes, com acabamentos, métodos e simbologias particulares. Ambos, no entanto, recorrem a um personagem mirim como a âncora do enredo.
Em "Abril Despedaçado", a história das duas famílias (Breves e Ferreira), que se matam ao longo de gerações - por dívidas de sangue e terras – é narrada pelo jovem Pacu (Ravi Ramos Lacerda), irmão mais novo de Tonho (Rodrigo Santoro).
A localização é incerta. Mesmo assim, o filme só parece ganhar com a falta de precisão geográfica, torna-se, embora regional, mais universal. Sabe-se apenas que é Nordeste brasileiro, ano de 1910.
Agora é Tonho que carrega a incumbência de derramar mais uma vez o sangue de um Ferreira, por causa do ódio, da tradição e da honra dos Breves. E assim é feito.
O personagem de Santoro monta uma tocaia e segue-se uma das mais competentes seqüências de perseguição rodadas no cinema brasileiro (onde os pontos de vistas de cada um é mostrado concomitantemente, através de fusão. Até o tiro, até o final).
"Abril Despedaçado" leva o mesmo nome de um romance albanês. Ou seja, Walter Salles retirou das montanhas dos Balcãs, de um texto de Ismail Kadaré, os elementos para uma versão nordestina das vendetas, tão comuns na história não oficial do Brasil.
É do livro todo o ritual em torno das mortes sucessivas. É do livro a exigência das tréguas intermitentes, do respeito com a família odiada, com a rigidez do trabalho e, sobretudo, com a tradição. Mas não é do romance – e sim de uma simbologia própria da fita – os elementos que a tornaram uma obra poética. Até porque o livro de Kadaré mais parece um estudo antropológico.
Ismail Kadaré montou sobre um velho código de conduta balcã (o Kanun) uma história trágica. No filme de Salles, novos elementos fazem com que as engrenagens que são tão sheakespereanas, a priori impossíveis de serem quebradas, tornem-se um pouco maleáveis.
O tom trágico não deixa de existir. Mas no longa, a redenção, tema alvo do diretor desde o belíssimo "Terra Estrangeira", surge na figura infantil. Salles, portanto, além fazer uma adaptação do romance, impõe-se de liberdade para recriá-lo à medida brasileira. E não haveria outra forma de ser.
Aliás, é nas engrenagens de uma bolandeira (máquina rústica que mói a cana-de-açúcar) que está uma das mais importantes metáforas do filme. Enquanto o gado serve de tração para a máquina, enquanto a família sob o sol queima mais um dia no trabalho, o tempo passa.
Tonho, que recebeu a trégua de apenas uma lua, sente a cada girar da engrenagem, a cada vôo do irmão no balanço, a cada dia e noite que passa, sua morte sempre mais próxima. Como um personagem do filme o explica: "o relógio marca mais um, mais um, mais um. Mas para você ele diz: menos um, menos um, menos um...".
"Abril..." ainda tem o mérito de dizer muito com poucas palavras. É quase mudo, mas não é superficial. Tem poucos diálogos e muita imagem. A fotografia de Walter Carvalho é tão bonita que o filme chegou a receber acusações. Porque não seria ético ou justo retratar a miséria através da beleza.
Polêmicas e ingenuidades à parte, o longa tem imagens que ficam na memória por muito tempo, como o início do filme, quando Pacu começa a narrar na penumbra azul da madrugada, a tragédia de sua família.
Texto publicado originalmente em cabugi.com e Tribuna do Norte
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