quarta-feira, janeiro 23, 2008

Jogo de Cena


O cinema de Eduardo Coutinho sempre foi voltado, em parte, à discussão do próprio fazer do documentário. O tal do efeito câmera, termo que designa o quanto que a presença de uma equipe de filmagem influencia nas entrevistas, tornou-se freqüente entre os realizadores e a crítica cinematográfica. Porque Coutinho fez escola e porque o seus filmes de conversas cada vez se tornam mais significantes.

Se Coutinho fosse um desenhista, seria possível reconhecer seu trabalho de longe. Bastaria uma olhadela de relance para reconhecer seu traço duro, com contornos fortes, de personagens bem desenhados. E é por isso que Jogo de Cena é um marco, dentro e fora de seu cinema.

O filme, que foi exibido fora de competição durante o Festival do Rio 2007, é uma reinvenção da obra do cineasta. É compreensível que Coutinho esteja buscando outros caminhos, pois toda marca é também uma forma. Observando a sua filmografia mais recente, é possível ver em O Fim e o Princípio uma outra tentativa de reestruturação. Coutinho, nesse filme, queria um documentário livre, sem pesquisa prévia e sem um tema definido. Acabou fazendo um filme peculiar, um filme sobre o filmar.

Agora, com Jogo de Cena, ele retoma à vontade de se recriar.

O filme se passa dentro de um teatro e é filmado sobre o palco. Ao fundo das entrevistadas, sempre estão as cadeiras vermelhas e vazias. É uma inversão de experiência para o espectador, já há tanto acostumado com suas poltronas. Antes, porém, ainda no primeiro plano, é mostrado um anúncio de jornal. É um chamado para um teste em um filme de documentário. Esse é um recurso já usado por Coutinho, que em Santa Marta coloca uma placa na favela, pedindo a quem tivesse o que falar para passar em determinado endereço, onde a equipe ficava de plantão para entrevistar os moradores.

Inicia o filme Jogo de Cena: vemos o anúncio e logo depois um primeiro depoimento. É uma atriz falando sobre o seu trabalho no Nós do Morro, grupo de teatro que ficou famoso por compor o elenco do filme Cidade de Deus. Para o espectador que conhecia a sinopse, surge aí a primeira das muitas dúvidas que o filme irá plantar.

Acontece que Jogo de Cena é um documentário com personagens reais e com atrizes interpretando algumas das pessoas entrevistadas. Nele, estão atrizes nacionalmente conhecidas como Andréa Beltrão, Marília Pêra e Fernanda Torres, além de outras não célebres.

Ao poucos, dessa forma, o filme vai construindo um universo próprio. Sendo um filme sobre o ato de encenar no documentário e sobre o real na ficção, Jogo de Cena irá a cada instante colocar questões ao espectador. Primeiro pondo em dúvida sobre o que é e o que não é real, depois levantando questões sobre o papel do cinema documentário.

Quando se cria uma linguagem nova, é necessário dar tempo ao espectador para ele aprender a ler. É o que acontece em Grandes Sertões Veredas, quando Guimarães Rosa “ensina” ao leitor a linguagem que vai empregar no livro. Guimarães faz isso abrindo um longo prólogo antes de adentrar na sua história propriamente dita. Ele dá tempo para o leitor ir se acostumando aos seus neologismos.

É algo semelhante o que acontece em Jogo de Cena. Coutinho não é didático. Mas ele ensina a melhor assistir o filme. Os primeiros depoimentos (reais e encenados) têm essa função, de ir fazendo o espectador mergulhar na obra. Nesses primeiros depoimentos, o filme apresenta seu foco documental e sua forma de filmar.

Os depoimentos, invariavelmente, giram em torno da maternidade, das dores e do sufoco de ser mãe. São entrevistas tão doloridas, que em certo ponto nos sentimos dentro de uma sessão de psicanálise.

As lágrimas, inclusive, são foco de análise dentro de Jogo de Cena. É Marília Pêra quem comenta com Coutinho que o verdadeiro choro é feito escondido. E por isso ela tentou não chorar ao interpretar uma das personagens do documentário. Já Andréa Beltrão diz que não conseguiu não chorar. Ela achou a história triste demais. Fernanda Torres, ao contrário, se expõe enquanto profissional quando fala que não consegue entrar no papel: “isso está parecendo um teste”, ela diz.

Jogo de Cena representa uma reviravolta importante na obra de Eduardo Coutinho que, com este filme, prova que não falava bobagem ao sempre aconselhar outros realizadores a serem inventivos. É que embora ele tenha sido importantíssimo para o documentário brasileiro, seu cinema se transformou numa espécie de dogma. E dogmas não são bons.

Reinventando-se, Coutinho criou um dos mais importantes filmes nacionais, desde a retomada.

Este texto foi publicado originalmente na Revista Moviola.

4 comentários:

Mme. S. disse...

Eu vi uma matéria sobre Jogo de Cena na TPM e fiquei muito curiosa. Agora, depois de ler vc, estou mais ainda... pena que nessa terra de sol escaldante é bem possível que não chegue. um beijo, meu querido.

Renan Castro disse...

Olá, estava pesquisando e encontrei seu blog,e a primeira coisa que li foi “Asas Brancas” de Wim Wenders, que é retratado no livro “Aos meus amigos” de Maria de Adelaide Amaral sobre o muro de Berlim e a época da ditadura militar, agora na nova minissérie “Queridos Amigos” da rede globo. E que por sinal estou gostando.
Fiquei impressionado com o seu jeito clássico e simples de escrever, e decidi ler mais coisas, até que cheguei ao mais recente “Jogo em Cena”.
Ainda não tive a oportunidade de ler “Grandes Sertões Veredas” mas deve ser muito interessante o modo que o autor, assim como Guimarães Rosa ensina, e prepara o espectador para adentrar no seu estilo de obra.
Enfim, quero elogiar o seu profissionalismo, e vou até procurar saber se acho a Revista Moviola aqui no meu estado.
Abraço.

Aristeu Araújo disse...

Meu caro, obrigado pelas palavras. Mas apenas um adendo, a Revista Moviola é um site. Você pode acessar em www.revistamoviola.com

pin hole disse...

Aproveito este espaço para comunicar a 5ª edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema que acontecerá em agosto na cidade de Salvador/BA.
O Festival está com as inscrições abertas para Mostra Competitiva até o dia 31 de maio. Informações no site www.coisadecinema.com.br/hotsite.
Entre os nomes confirmados para o Festival está o de Beto Brant para o júri e José Luís Guerin (la ciudad de Sylvia) e Andrea Tonacci (Serras da desordem) que virão lançar seus filmes, ainda inéditos em Salvador.