segunda-feira, junho 05, 2006

Moacir - Arte Bruta


O conceito de arte bruta é uma tentativa da psicanálise de delimitar e entender a produção estética de pessoas com problemas psiquiátricos. Arte bruta é a manifestação do inconsciente, é quando se faz arte sem conhecê-la, sem a noção de sua história ou de suas referências. Arte bruta refere-se ao que a mente é capaz de produzir sem a interferência do mundo exterior. É um conceito estranho. Um entendimento que parece vir imbuído de algum preconceito com o fazer artístico de pessoas que, a rigor, não estariam aptas a tal.

Arte bruta é o que Moacir faz. Moacir é pobre, analfabeto, camponês. Mora no Povoado de São Jorge, um pequeno lugarejo no interior de Goiás. Moacir também tem problemas para se comunicar, além de alguma disfunção psiquiátrica que o mantém num mundo à parte e ao que parece, envolto em alucinações. É dessas visões que Moacir retira grande parte das imagens que desenha e pinta.

Nesse documentário de Walter Carvalho, Moacir não tem sobrenome. Pode até parecer apenas um detalhe, mas a omissão do sobrenome mostra uma escolha importante sobre o “biografado”. É uma escolha que reafirma a condição de quase anonimato do personagem.

Moacir sabe assinar seu nome. E ele o faz em cada desenho que termina. A câmera, por muitas vezes, mostra esse ato, em linhas brutas. Um gesto simples que também diz muito sobre ele. Naquele nome mal traçado de Moacir, sem perceber o espectador faz toda uma conceituação, ou melhor dizendo, uma pré-conceituação.

Moacir – Arte Bruta é o segundo documentário assinado por Walter Carvalho. O primeiro foi Janela da Alma e foi feito em parceria com João Jardim. Nesse segundo, Walter Carvalho abre mão da função que lhe é mais cara dentro do cinema, da função que o tornou referência no cinema nacional contemporâneo, a direção de fotografia. Ele assinou a luz de filmes como Terra Estrangeira, Abril Despedaçado, Lavoura Arcaica, Amarelo Manga e Madame Satã. Em Arte Bruta, é Lula Carvalho, seu filho, quem faz a fotografia.

Arte Bruta não tem a profundidade – nem estética, nem de conteúdo – que Janela da Alma possui. A polifonia de depoimentos do primeiro documentário desta vez é substituído por um pequeno punhado de entrevistados. Todos eles tentando explicar de onde vem a arte de Moacir. O próprio Moacir fala no filme, mas é uma fala entrecortada, confusa, repetitiva. Dialeticamente, trabalha-se a noção que o povoado tem sobre Moacir e sua pintura.

O sexo é dominante na obra de Moacir. São representações humanas que lembram em muitos momentos expressões de algumas tribos africanas. Olhos/vaginas que se multiplicam por muitas telas; demônios que parecem ser o carro chefe de sua propaganda junto ao povoado. Demônios que assustam e encantam o povo da região. Sua casa é uma espécie de outdoor, com pinturas grandes que se espalham pelo lado de fora e que de longe são um chamariz para os turistas que por ali passam e compram seus trabalhos. É com a venda desses desenhos que se sustenta a família: Moacir, sua irmã e seus pais. São eles que falam sobre seus desenhos e sobre a vida de Moacir. Além deles, alguns vizinhos.

Walter Carvalho descobriu os desenhos de Moacir como muitos que por lá passam. No início da década de 90, de passagem, viu um pequeno desenho em um bar da região. Soube de sua história e procurou conhecê-lo. Fez uma foto de Moacir e sua família, ainda morando em uma casa de palha. É um dos primeiros momentos do filme, quando Walter Carvalho mostra a foto feita há 13 anos e pergunta se Moacir lembra da ocasião.

Há um outro plano significativo no documentário, quando Moacir, em casa, assiste TV. O sinal é ruim e em meio ao chuviscado é exibido um programa que leiloa pinturas. Não há como saber se toda a atenção que Moacir dá ao programa é apenas pelo fascínio que a televisão costuma exercer ou se é pelo contato com a pintura de outro autor. São flores e marinhas, pinturas meramente decorativas.

Moacir não sabe, mas nesse documentário ele é a representação de um mundo exótico, algo parecido com o que acontecia na época das grandes navegações, na época em que o Velho Mundo ficava fascinado com o que era descoberto por estas terras. Esta afirmação não toma aqui um caráter meramente pejorativo. No entanto, a força de Moacir – Arte Bruta está mais no estranhamento do público com esse personagem do que na obra em si. De alguma forma, é como se fôssemos europeus fascinados com um mundo desconhecido, um mundo fundado sobre crenças e medos.

Janela da Alma


Espelho do mundo

A primeira impressão que surge ao assistir os minutos iniciais de Janela da Alma, documentário de João Jardim e Walter Carvalho, é que é um filme sobre o ato de ver, sobre a visão, e sobre como determinadas pessoas que possuem algum tipo de problema na acuidade visual a encara. Não está errado. No entanto, o filme propõe mais. Janela da Alma propõe também um debate abstrato e poético sobre o tema. O documentário não se resigna a tratar da visão (ou da falta dela) a partir de um lado pessimista ou limitador do que é o enxergar. É por esse motivo que o primeiro depoimento apresentado é o de Hermeto Pascoal, músico multinstrumentista. Hermeto Pascoal não consegue fixar os olhos em um único objeto. Suas pupilas se mexem ininterruptamente em diferentes direções, o que o faz descrever com bom humor, que sua vista é rica, porque enxerga mais.

Em depoimento seguinte, o escritor José Saramago, nobel por seu livro Ensaio sobre a Cegueira, continuará recortando o tema de Janela da Alma. Para Saramago, a visão limitada do homem o faz ser como é. Ele faz uma parábola e imagina que se Romeu tivesse os olhos de falcão, provavelmente não se interessaria por Julieta, já que ele enxergaria muito mais defeitos do que o olho humano é capaz de fazê-lo.

Assim, o filme de Jardim e Carvalho, embora não negue em determinados momentos uma investigação mais banal sobre o tema, se aprofunda em uma discussão plural e abstrata, em que o tema “visão” é apenas um propulsor para diversas compreensões de mundo, sejam elas de cunho artístico, filosófico, poético, científico ou social.

Saramago irá abordar, por exemplo, como surgiu a idéia para escrever Ensaio sobre a Cegueira, quando se perguntou como seria o mundo se todos fôssemos cegos. De acordo com sua reflexão, a resposta é que já somos, tendo em vista a total desordem que assola o mundo, o desafeto, a miséria etc.

Talvez seja disso que o filósofo esloveno Evgen Bavcar queira falar com suas fotografias. Bavcar se tornou cego após dois acidentes de guerra. As perguntas imediatas que qualquer um faria não são colocadas pelo filme, “pode um cego fotografar? qual é o valor artístico de um fotógrafo que não vê o que enquadra?”. O filme não pergunta mas mostra o fotógrafo em ação, fazendo fotografias e medindo com as mãos o foco, tateando o espaço entre a câmera e a modelo. Evgen Bavcar também não problematiza a questão, pelo contrário, se mostra tão surpreso quanto qualquer outro, falando que a primeira vez que revelou as fotografias feitas após a cegueira, não acreditou quando disseram que havia ali imagens. Mas há um determinado trecho que é revelador, quando Bavcar mostra as fotos que fez de sua sobrinha no campo. Enquanto ela corria com um sininho, ele podia seguir seus movimentos através do som. Ele explica que fotografou, na verdade, o barulho desse sino, que não aparece nas fotos. Assim, ele estaria fotografando o invisível.

Já Hermeto Pascoal revela que quando tinha 30 anos, chegou a querer ser cego temporariamente, para que assim pudesse melhor desenvolver sua percepção musical. O músico diz que a visão não se dá fisicamente, com os olhos. Ao contrário, a visão verdadeira seria a visão interior.

A questão da imaginação, uma outra leitura para essa questão da visão interior, exposta por Hermeto Pascoal, também é abordada no filme. A imaginação como alimentador da criação artística. Para o poeta Manoel de Barros, “a transfiguração é a coisa mais importante para o artista”. Manoel de Barros diz isso explicando que o modo como enxerga fisicamente o mundo não influencia seu trabalho. Sendo um poeta que reinventa a língua, ele julga que o entrevistador gostaria de ouvir dele algo diferenciado sobre sua maneira de ver. Mas ele é enfático dizendo que seu trabalho é sobre a palavra. E embora seus poemas pareçam tortos, sua visão não é.

Para organizar todas essas e outras idéias que são expostas ao longo de Janela da Alma, João Jardim e Walter Carvalho escolheram uma estrutura fragmentada para o documentário. Uma estrutura que possibilitasse organizar assuntos tratados pelos depoentes, agrupando-os em blocos temáticos. No entanto, o resultado final é muito mais poético e lírico do que essas linhas fazem crer. Isso porque a estrutura escolhida também deu vazão a interpretações metafóricas/imagéticas feitas pelo próprio documentário, não se limitando às discussões apresentadas pelos entrevistados, em sua maioria intelectuais.

Para intercalar entrevistas ou mesmo para sublinhar um sentimento ali exposto, a fotografia de Walter Carvalho busca imagens que (re)pensam o ato de ver. Esse é o sentido do primeiro plano do filme, quando saindo da tela preta, surgem imagens desfocadas que ao pouco entendemos ser de uma fogueira sendo alimentada em meio à escuridão. Uma imagem que remete à alegoria da Caverna de Platão, de uma sociedade de pessoas presas na ignorância, na ilusão de um mundo falso.

Em seguida, a segunda dessas imagens incorporadas ao filme é um plano em super detalhe da pele de uma mulher. A proximidade da lente é tal que o corpo torna-se quase algo abstrato, sendo reconhecido apenas após alguns segundos. E é interessante notar que sobre essa imagem surge um depoimento que explana sobre anjos mediadores, entidades que fazem a transição entre o mundo real e o mundo espiritual, duas faces de um universo que podem ou não ser encarados como verdadeiros, assim como aquela imagem de um corpo que, ao mesmo tempo, pode não sê-lo, dada sua abstração. Assim como pode ser a construção de uma sensualidade no extremo da intimidade ou, ao contrário, uma desconstrução do sensual no apelo do nu.

Este mesmo plano (ou outro semelhante?) irá retornar nos últimos minutos do filme, trazendo a tona uma reflexão sobre o que é realmente o “ver”. É como se os realizadores perguntassem se após todos os depoimentos e recortes feitos a partir do tema central, se aquela mesma imagem permanece com o significado inicial. Como Janela da Alma não se trata de um documentário de tese, a retomada desse plano é um repensar do próprio projeto e dos fins com ele alcançados. É, do mesmo modo, um retomar o início do filme e talvez afirmar que não há uma conclusão intelectual. Em outras palavras, que não há ali a defesa de uma tese.

Essa interpretação pode ser reforçada com a seqüência final, seqüência que junto a esses planos anteriormente analisados, podem ser tomados como momentos síntese do documentário. Integrados, podem ser tomados como a seqüência representativa do filme. A última seqüência são cenas de um parto e, embora possam parecer deslocadas do universo imagético até então explorado, a crueza das imagens (é um parto natural sendo filmado sem cortes) e as cenas seguintes, mostram que não. No fim, vê-se o recém-nascido abrindo os olhos e ali temos o primeiro contato visual da criança com o mundo. Novamente o filme vai recolocar as mesmas questões. Com essa imagem, a criança abrindo os olhos pela primeira vez, o documentário está reiniciando toda a discussão, está também mostrando a dor de ver, o quão traumático é para o recém-nascido abrir os olhos. E é esse ver (ou não ver) que norteou toda a discussão de Janela da Alma.

As outras imagens utilizadas durante o documentário são, em geral, tentativas de reinterpretar as disfunções do olho, tentativas de aproximar o espectador das elaborações feitas a partir da má visão que são acometidos os entrevistados. São imagens fora de foco ou imagens de paisagens tão desoladas que nada há ali para se contemplar. Essas imagens têm a função de fazer o espectador pensar o que é o belo, de problematizar – junto com os depoimentos – o que é o ver.

Se não fosse pelo tema proposto e pela escolhas de seus entrevistados, Janela da Alma talvez fosse um documentário burocrático. No entanto, a carga abstrata com que os depoentes exploram o assunto e as escolhas da montagem o transformaram num filme singular. Isso porque a estrutura de entrevistas fragmentadas em blocos temáticos, unidas a imagens de transição, é um recurso largamente utilizado pelo dito documentário expositivo. Mas não, o modo de representação escolhido é o reflexivo. É possível que João Jardim e Walter Carvalho não tenha tido outra escolha a partir do material que dispunham ao término das filmagens. Eles mesmos informaram que no início da montagem, transcreveram todas as entrevistas e fizeram um roteiro a partir do texto. No entanto, ficaram frustrados com andamento do projeto. Partiram, então, para escolhas mais poéticas, assumindo um material documental aberto e sensível.

É mais ou menos o que o poeta Antônio Cícero explica quando problematiza a expressão que dá o título do filme, cunhada pelo pintor renascentista Leonardo da Vinci, “o olho é a janela da alma, o espelho do mundo”. Para Cícero, o problema em questão é que se o olho é a janela da alma, há aí a necessidade de um outro olho para ver essa janela (que também é janela). E assim é necessário mais um olho e assim sucessivamente, até o infinito.

Originalmente escrito para a disciplina de Cinema Documentário da Universidade Federal Fluminense

segunda-feira, maio 01, 2006

Estrela Solitária

Em busca de um passado

O cinema de Wim Wenders está marcado pela idéia do retorno e do tempo perdido. É da volta de seus personagens ao local de uma vida pregressa, que o diretor alemão extrai as idiossincrasias que tomam conta de grande parte de sua filmografia. Há um problema nisso. Um problema comum àqueles que, como Wim Wenders, têm uma carreira extensa por trás das câmeras e dos roteiros. A obsessão por um tema ou por uma forma de filmar, pode acabar esvaziando a obra e seus intuitos. É daí que resulta uma certa má vontade da crítica internacional com os filmes de Wim Wenders pós Asas do Desejo, sem dúvida o mais importante de sua carreira.

Em Estrela Solitária, tudo está lá. Os mesmos personagens em situações bizarras, às vezes extravagantes; a volta do pródigo e desaparecido; a permanente tentativa de localizar o bom (o bem) em meio ao caos urbano, moderno, contemporâneo; as valorações a partir das contradições. Mas há algo em Estrela Solitária que reafirma Wim Wenders, que o faz – mesmo na reinterpretação de seu próprio cinema – digno de elogios há um tempo esquecidos.

Estrela Solitária é a retomada da retomada de seu projeto permanente de cinema. Mas essa volta – não só do personagem à sua cidade natal, mas também do próprio diretor a outro grande filme seu, Paris, Texas – transborda em uma poesia. É um poema seco, esse de Estrela Solitária. Seco como as rochas que compõem a geografia do oeste americano e dos filmes de gênero, com seus cowboys, cânions e mocinhas indefesas.

E é nessa secura ambientada no meio do deserto que se inicia o filme, a história de Howard Spence, um ator decadente, protagonista de antigos faroestes de sucesso. Mas o primeiro plano de Estrela Solitária, na verdade não é do deserto. Da tela preta surgem dois recortes de céu, como olhos. Depois o filme deixará que entendamos que esses recortes são buracos numa rocha. “Olhos” de pedra que vêem um pedaço de céu, um pedaço de deserto que parece querer algo do inalcançável. Segue-se a fuga do ator, que desaparece do set de filmagens, deixando para trás uma equipe incapaz de prosseguir com a produção do ironicamente intitulado Fantasma do Oeste.

Howard Spence tem um passado turbulento. Sua vida de fama o levou não só aos abismos daquele relevo americano, mas a abismos próprios da espécie humana. Howard viu sua carreira chegar ao estrelato e à decadência. Todo um percurso marcado por drogas, promiscuidade e algumas prisões. À procura de um lugar insondável pela produção de seu filme, ele acaba pedindo refúgio à mãe, que não via há pelo menos 30 anos. É aí que se estreitam os filmes Paris, Texas e Estrela Solitária. Dois homens vindos do deserto em busca da família, dois filmes com o mesmo roteirista, Sam Shepard, que nesse último também é o ator que interpreta Howard Spence.

Mãe e filho, quase desconhecidos em virtude do tempo e da distância. Mas não é nesse reencontro que Estrela Solitária vai se focar. Sua mãe lhe dá um recado que há 30 anos guardava, sobre uma mulher que a procurou em busca de Howard. O recado, na verdade, o tempo apagou da memória. Mas era sobre uma mulher que teria tido um filho dele e que o procurava para avisá-lo sobre sua paternidade. É aí que o ator vai mais uma vez em procura de seu passado.

O passado está numa cidadezinha do interior, onde todos se conhecem e são cumprimentados pelos nomes. A mulher, mãe desse filho recém descoberto, é uma antiga garçonete, hoje dona do estabelecimento onde Howard a conheceu. O filho é um músico que lembra Nick Cave em sua participação em Asas do Desejo.

Estrela Solitária irá, assim, tentar investigar a dor de um homem vazio. Que não entende ao certo suas escolhas em revisitar o passado. O certo é que esse ator quer encontrar um alento que não alcançou nesses 30 anos que o afastaram de suas raízes. Talvez esse alento que procura seja mais forte do que a vontade de conhecer o filho ou reatar laços com a mulher que um dia foi um caso fugidio.

Em paralelo, o filme acompanha outros dois personagens que de modo semelhante estão em situações de transição. Um é um investigador da companhia de seguros que está responsável por encontrar Howard para que ele retorne às filmagens. A outra é uma garota que está procurando um lugar para depositar as cinzas de sua mãe, morta há pouco tempo. Ela também procura o ator, o que sugere ser um indício de outro fantasma de seu passado.

É no encontro de todos eles que as verdades vão se descortinando. Mas as verdades são pouco factuais. Essas verdades estão tão escondidas que para achá-las é preciso romper algumas dores internas, escavar esses abismos que o próprio Howard passou tantos anos imerso. É o caminho para a sabedoria.

sábado, janeiro 28, 2006

2046

A dor do impossível

As primeiras impressões sobre o filme 2046Os segredos do amor, de Wong Kar-Wai, costumam ser arrebatadoras. É certo que há um grupo de espectadores, mais afeitos às concatenações lógicas, que o renegam por não encontrar muitas ligações inteligíveis. E é nessa dicotomia entre razão e sensibilidade, que giram as discussões sobre a continuação do aclamado Amor à flor da pele.

Parece que todo o não entendimento sobre 2046 surge quando o público tenta fazer ligações com o filme anterior, lançado no ano de 2000. Não porque exista na sua continuação uma discordância de enredo, mas, sim, estética. Wong Kar-Wai não apenas dá seqüência à história do jornalista Chow Mo-Wan (Tony Leung), mas cria para ele todo um novo universo que não existia em Amor à flor da pele. Enquanto que na primeira história, o escritor mantinha seus encontros fortuitos e sigilosos com Su Li-Zhen (Maggie Cheung), neste ele é um bon vivant de muitas mulheres. Enquanto que em Amor à flor da pele as opções eram por uma câmera tão discreta quanto a impossibilidade daquele amor, em 2046 as opções são outras. Nesse último filme, Wong Kar-Wai prima por planos que desmascaram esses amores.

Há um signo importante a ser analisado, e é o do próprio nome do filme. 2046 é o nome de um quarto de hotel. No primeiro filme esse quarto era uma ambiente quase inviolável, onde a permanência da câmera era permitida por pouco tempo e onde quase tudo o que ali acontecia, não nos era permitido escrutar. No novo filme, 2046 é um novo quarto de hotel, embora o mesmo na nostalgia do personagem. Nessa continuação, o jornalista Chow acaba preferindo ficar num apartamento vizinho, o 2047, e assim ele melhor compreende o 2046 do presente e o do seu passado. Foi num apartamento de mesmo número onde a sua grande história de amor não se realizou. E é agora, nesse novo apartamento, que ele irá tentar reencontrar um significado para aquilo que perdeu, que de alguma forma não teve ou manteve.

Chow é um escritor de histórias baratas. Ele assume isso em Amor à flor da pele, quando reconhece sua incompetência para escrever sobre algo sério, mais digno. De algum modo, esse amor mal resolvido o faz tentar mais uma vez em 2046, quando escreve sobre o futuro. Uma ficção científica passada no ano que o número do apartamento prevê. 2046 seria um lugar no tempo em que os sentimentos não se perderiam, onde não haveria dor. Instalado em seu apartamento vizinho, olhando por frestas para a vida amorosa ao lado, ele escreve sobre a impossibilidade da felicidade no presente. Remete-a para um futuro e ao mesmo tempo para o único lugar no tempo onde experimentou algo de pleno, embora efêmero. Para Wong Kar-Wai, 2046 é o lugar no passado onde deixamos nossa plenitude e é o lugar no futuro onde vislumbramos um dia poder retomá-la. Entendendo isso, o resto é um jogo simples. Não entendendo, o filme é um emaranhado de imagens bem “pintadas”.

As relações entre presente e passado estão a todo instante misturadas na fragmentação imagética de 2046. Assim como as coincidências dos números de quartos, assim como as mulheres que passam pela vida do jornalista, assim como suas histórias de amores também mal resolvidas e inadaptadas. São histórias trágicas, que servem de alento e inspiração para o jornalista. Uma mulher que é morta pelo ciúme do parceiro, uma outra que espera no inverno um namorado que não virá, uma que todos os dias tenta aprender uma outra língua, a língua do seu amante japonês. Em todas elas, Chow busca a mesma do passado. E em algum momento, dentro do turbilhão de sentimentos que o filme analisa e projeta, há a tese de que o verdadeiro amor deve surgir no momento exato. É o fardo que esse escritor terá que carregar, seja na década de 1960 ou no trem que o leva para as amantes andróides de 2046.

E qual é esse exato momento para o amor verdadeiro? Pelo jeito ninguém sabe e por isso é importante o símbolo do trem que parte para esse lugar sem dor, onde há uma permanência das coisas, dos sentimentos. É um futuro aos moldes de Bade Runner, de Ridley Scott (1982), onde embora ninguém creia, há nos andróides a consciência de sua condição máquina. Há neles a consciência da impossibilidade de amar.

Estou no grupo que permaneceu arrebatado pelo filme. Mesmo compreendendo alguma verdade nas críticas que acusam Wong Kar-Wai de menor ousadia, mesmo entendendo que ele possa nessa continuação ter explorado algumas fórmulas já testadas por ele. Ao sair da sessão de 2046 eu percebi que ali havia algo que mudaria para sempre minha forma de ver e sentir o mundo. E isso, na arte, é maior do que tudo.