terça-feira, outubro 04, 2005

Eros


Eros é um dos mais célebres moradores do Olimpo. Acabou, no entanto, virando pastiche de si mesmo ao longo dos séculos. Eros, entidade que representa a atenção carnal, o desejo irreprimível, deus que permanece em Dionísio. Numa visão superficial, porém não falha da psicanálise, Eros moldou o homem, sua psique. O óbvio é que em um filme que leve como título a alcunha de tal deus, seja o sexo sua linha narrativa. O menos óbvio, porém, são as escolhas que os produtores fizeram para essa representação do sexo contemporâneo, porém ficcional: Michelangelo Antonioni, Steven Soderbergh e Wong Kar-wai. Três cineastas díspares, de três continentes diferentes.

O primeiro, um quase mito do cinema: Antonioni. Surpreendente encontrar o que talvez seja a última realização do mestre de Blow-up e Teorema. Surpreendente percebê-lo lúcido em sua atividade de cineasta aos 93 anos. Eros é um filme de episódios, três capítulos, um para cada diretor convidado. Antonioni o abre e discute seu tema favorito, o que norteou toda a sua carreira de cineasta engajado, de cineasta autor, artista: a burguesia e sua decadência moral.

Como é de se esperar, Antonioni apresenta uma história recheada de símbolos. Ler um filme desse cineasta italiano deve ser um trabalho a ser feito por camadas. São necessárias várias leituras até se chegar ao cerne, embora muito provavelmente existam outras possíveis, das mais superficiais às mais eruditas.

A primeira leitura: um casal de burgueses. Uma relação em crise, que o menor descuido leva o outro à impaciência, a discussões e brigas. Um homem que busca outra mulher para suprir o que o casamento já não lhe oferece — talvez a alegria do desconhecido. Um homem que parece ter mais cuidado com seu automóvel do que a mulher que um dia disse ter amado. Duas belas mulheres. Uma traída e outra motivo da traição; uma que cria cavalos e outra que é incógnita; uma que é presa aos ditames de uma moral em fase de mutação, outra que é liberta de tudo, isolada do mundo.

Uma outra leitura: um casal de burgueses. Uma mulher que oferece-se nua a um marido que não mais a enxerga, que está preso numa rotina que lhe desagrada. Uma outra mulher que é motriz de uma traição. Mas traição apenas porque este homem não entende que as duas são a mesma mulher. Uma que anda em todos os lugares com os seios à mostra. Uma outra que veste casaco de couro, quando parece ser verão. Uma mulher que toma banho de sol e outra que mora numa torre, encastelada do mundo, como algo prometido, prestes a ser resgatado. Uma mulher que se locomove no banco do carona; uma outra que dirige um automóvel que não cabe na garagem daquele homem perdido entre o querer e o não querer.

Antonioni propõe uma história de metáforas sobre o bem-querer e a culpa. Sintomaticamente, e talvez simploriamente, aponta para a visão de mundo capitalista os desencontros desses amantes. Simplório porque datado; sintomático porque ainda necessária e esquecida tal discussão. Datado em forma, o filme parece ter saído da década de 1970. Entretanto, não menor por isso.

O segundo episósio, Equilíbrio, leva a assinatura de Soderbergh. Diretor de obras conceituais como Kafka; de filmes sérios como Traffic; ou de caça-níqueis como Erin Brockovich, Soderbergh virou um queridinho dos estúdios americanos. É um cineasta plural, que tenta carregar duas carreiras distintas, a de realizador de filmes Blockbusters, vide seu último 12 Homens e Outro Segredo e de filmes mais alternativos. Neste Eros, sua participação parece ser uma junção destes dois cineastas.

Equilíbrio, de longe é o mais banal dos três episódios. O que não quer dizer que seja ruim, apenas não tão necessário. O problema é que ele soa um tanto deslocado, perdido entre duas boas obras. Um pouco por ter um tom cômico, enquanto os outros são mais sérios, dramáticos até.

Soderbergh recorta o tema proposto a partir da visão freudiana, e faz isso descaradamente. As primeiras imagens, carregadas de uma beleza plástica azul e oscilante, é um sonho. O sonho de um homem ansioso com seus negócios, com sua falta de criatividade. Mas um sonho sobre sexo e traição. Esse homem estará, no dia seguinte, no consultório de seu psicanalista para relatá-lo. Essa é a maior parte da história, e o que há de mais cômico.

Soderbergh costuma ser didático em seus filmes. Mesmo quando mais ousa, ele o faz a partir de algum rigor no formato de seu experimento. Faz isso para não desagradar, provavelmente para não correr maiores riscos do que já corre, quando se equilibra pelos caminhos do cinema independente americano. Por isso, há três fotografias distintas em Equilíbrio. A primeira azul, a segunda preto e branco e a terceira em tons ocres. É um recurso largamente utilizado no cinema e que ele mesmo já lançou mão em Traffic, para delimitar os vários núcleos narrativos.

Enquanto o homem relata seu sonho e nele se aprofunda, seu psicanalista espreita alguém que não chegaremos a saber quem é. Espreita com binóculos e tentar chamar sua atenção com aviões de papel que joga da janela. O homem não percebe pois está imerso na sua tentativa de reconstrução do sonho. Equilíbrio porque no fim não saberemos o que é sonho e o que é realidade. Porque todos os elementos se misturam e se mostram palpáveis. Não há muito mais o que dizer. Quando não são geniais, as comédias parecem ser filmes menores, muito embora não seja sempre o caso.

Wong Kar-wai assina o terceiro episódio de Eros. É dele o propalado Amor à Flor da Pele e o esperadíssimo 2046. É dele este A Mão, que conta sobre o amor paciente de um alfaiate por uma prostituta. Dos três, este é o mais dramático, é o que não tem receio de apelar para os choros e as impossibilidades do querer. É o que bate com força no espectador, e não à toa foi escolhido para fechar o filme. Também é o que carrega consigo mais poesia, mais dor.

Na ficção de Wong Kar-wai, o amor e o desejo são quase sinônimos de plumas e paetês. A direção de arte é quase um personagem à parte. As roupas, os brilhos, os espelhos, tudo compõem a narrativa. Em A Mão, aliás, os espelhos abarcam grande parte dos planos pontos de vista dos personagens. Isso porque a prostituta é a representação maior da vaidade. E seu alfaiate, a ferramenta para satisfazê-la. Por isso ela nega o sexo. Ela o dar apenas em parte, apenas um pequeno fragmento do que se especializou em vender. Ela o toca para prendê-lo, e isso apenas uma vez. É interessante, no entanto, como Wong Kar-wai vai trabalhar a relação do não casal. Não são amantes; tão pouco são cliente(s) e vendedor(es). É uma relação ao avesso. Uma relação de um alfaiate que não cobra por suas roupas na esperança de conquistar uma prostituta; uma prostitua que nega-lhe o sexo, num misto de culpa pelo amor que o homem sente e na crueldade de mantê-lo presente.