sexta-feira, dezembro 09, 2005

Cinema, Aspirinas e Urubus


Perdendo países

Se viajar é perder países, como dizia Pessoa, partir é entrar em luto. Deixar as raízes culturais, abandoná-las para só encontrá-las em si mesmo, na memória e na nostalgia. Cinema, Aspirinas e Urubus, longa-metragem de estréia do pernambucano Marcelo Gomes, trata do encontro de dois viajantes: Ranulpho, que deixa o pequeno povoado em que mora no sertão, e Johann, alemão que cruza as estradas de terra do interior pernambucano. Ranulpho quer chegar ao Rio de Janeiro, terra prometida; Johann dirige um caminhão e vende aspirinas nas cidades onde pára.

No Sertão de Marcelo Gomes, o Sol e a noite cegam. Mis-en-scène de um Nordeste arcaico, que pouco sabia da Segunda Guerra noticiada pelo rádio. Metáfora do próprio encontro de dois viajantes tão distantes e próximos. Em 1942 Ranulpho desistia do Sertão do mesmo modo que Johann já havia desistido de sua Alemanha nazista. Dois personagens em metamorfose, perdendo pequenos países próprios.

O primeiro plano de Cinema, Aspirinas e Urubus é didático e chave para o entendimento da jornada dos dois personagens. Um primeiro plano totalmente branco, extenso, que pouco a pouco vai nos mostrando detalhes de um retrovisor de um veículo e de seu motorista, como se os olhos imersos no escuro do cinema precisassem de tempo para se acostumar à claridade seca daquela região.

Um alemão que está perdido pelas estradas esburacadas, que trava contato com sertanejos curiosos por ver um veículo, por ver um estrangeiro: um pequeno recorte da industrialização que começava a se espalhar pelo país de Getúlio Vargas. É aí que se dá o encontro dos dois protagonistas.

Inicia-se o road-movie de Marcelo Gomes, mesmo sendo esse um road-movie estranho. Um filme de estrada em que a câmera não acompanha a geografia, mas prefere ficar presa a seus personagens, na sombra da boléia do caminhão e próxima às velas e lamparinas que lutam contra a noite. O Sertão de Aspirinas é tão seco e duro que é pouco visto. É tão arisco, que não é permitido vê-lo em sua totalidade. As imagens surgem sempre esbranquiçadas, quase monocromáticas. Tudo é cor de terra.

Cinema, Aspirinas e Urubus surge para romper com um naturalismo-classe-média que reina na dita retomada pós Collor, surge como um paradigma desse cinema contemporâneo brasileiro. Ao lado de Amarelo Manga e Baile Perfumado, ratifica o frescor criativo pernambucano e põe seu nome na História do cinema brasileiro.

Mais a fundo, o filme de Marcelo Gomes trata não apenas do luto que é deixar suas raízes, mas da busca de uma nova identidade para aquele que se exila. Por isso é tão importante o encontro do alemão e do sertanejo, porque é no embate com o diferente que vai se delinear o novo ser que nasce. Se a viagem é a perda de países e, do mesmo modo, uma forma subjetiva de morte, o encontro é um renascer modificado, é também um exercício de alteridade. Talvez por isso, os road-movies carreguem consigo o clichê de ser uma metáfora para a transformação ou redenção de seus personagens, de redescoberta.

E as redescoberta acontecem para os personagens à medida que vão exibindo seu cinema publicitário aos sertanejos; à medida que estreitam laços de cumplicidade e descobrem no outro um laço de vida e suporte. É um filme em que tudo isso é dito sem muitas palavras, na lentidão do seu tempo diegético e na força física de suas atuações. É dito quando um povo de uma pequena cidade se assombra e se encanta com a primeira projeção cinematográfica de suas vidas (improvisada, ao ar livre). É dito nos muitos silêncios dos personagens.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Morro da Conceição


O tempo do silêncio

Eduardo Coutinho é uma referência obrigatória quando o assunto é o documentário contemporâneo brasileiro. Na verdade, Coutinho balizou no Brasil o gênero cinematográfico, com carreira iniciada no seu clássico Cabra Marcado para Morrer, terminado em 1981. Coutinho fez escola e conseguiu abrir, mesmo que parcamente, o mercado brasileiro ao documentário. Mas sua contribuição mais importante está mais na forma sugerida do que no respaldo reconhecido pelo público pagante. E aí há um paradoxo, uma espécie de encruzilhada causada por um modo extremo de se fazer documentários. Nos filmes de Eduardo Coutinho, a intervenção autoral não se esconde. Sem querer reproduzir um discurso ingênuo, da imparcialidade ou da objetividade frente ao foco do estudo, a verdade é que em filmes como Babilônia 2000 e Edifício Máster, o autor se apresenta para tentar a maior distância possível do seu tema. Ele não nega a própria presença, ele não nega a presença da câmera, ele não tenta esconder que há nesse ritual de entrevistador-câmera-entrevistado uma conduta padrão, tanto por parte do realizador, como por parte de quem cede sua imagem, sua voz, seu discurso. É uma radicalização da transparência: é dizer ao expectador, “você está assistindo a um documentário, e nele tudo e nada é verídico”.

O cinema de “conversas”, como tem sido definido essa escola do documentário, extrai desses discursos, desses depoimentos, o fio condutor da obra. E foram essas as escolhas de Cristiana Grumbach, em seu longa-metragem de estréia, Morro da Conceição. Não por coincidência, Cristiana vem trabalhando com Eduardo Coutinho desde 1999, desde Santo Forte. E embora a obra de Coutinho pontue sua carreira, e reflita-se inevitavelmente neste Morro da Conceição, espertamente Cristiana não o nega, mas soma-o às suas propostas de desvendar o tempo, a finitude. Morro da Conceição recolhe depoimentos de oito dos moradores mais antigos dessa que é uma comunidade incrustada no Centro do Rio de Janeiro. Um morro que nasceu comunidade graças à zona portuária, graças, em grande parte, a portugueses que migraram para o Brasil no fim do século XIX e início do século XX. São desses descendentes que o documentário vai ouvir a história de um Rio de Janeiro que não conhecia a balbúrdia da avenida Presidente Vargas, os altos prédios da Rio Branco ou a violência que assusta os noticiários de TV.

O recorte escolhido por Cristiana para Morro da Conceição é o do humano, mais do que o da arquitetura. Embora a localidade, carregada com o peso do tombamento histórico, resvale um valor cultural importante e que não poderia deixar de sê-lo retratado, o documentário prefere revelar pessoas. O morro surge, então, como metáfora para uma discussão maior, morte e vida, finitude, decrepitude. Conceição de fachadas tombadas, mas de interiores modificados. É como seus entrevistados, que são a memória oral de um tempo, mas escondem em si relatos singulares, como é singular cada vida, mesmo com suas intercessões. No filme, os entrevistados vão construindo passo a passo um documento sobre um Rio de Janeiro antigo; um relato sobre a memória familiar; expectativas sobre o que se termina.

Morro da Conceição se inicia com o nascer do sol, que ilumina os seus prédios antigos. Terminará no crepúsculo, dando a ilusão de um dia retratado em pouco mais de uma hora; remetendo a um histórico de filmes que buscam em sua narrativa essa idéia de um recorte de um dia qualquer: Berlim, Sinfonia de Uma Metrópole, de Walther Ruttmann; ou o recente Suíte Habana, de Fernando Pérez, entre tantos outros. Recortar uma vida em um dia. Talvez resida nesse intuito uma busca por um lirismo, um estratagema poético. A idéia de que o que for humano é válido de se retratar. Em um dia qualquer, em uma escolha a esmo, é possível encontrar coisas importantes a serem ouvidas/vistas. Intercalando esse “dia”, Cristiana apresenta imagens fixas de ruas do Morro da Conceição. São longas, mais extensas do que os olhos do público são acostumados a ver no cinema. Mas têm um fundamento para tal, porque o filme, dessa forma, pontua o tempo do silêncio.

Entre esses “silêncios” estão os depoimentos. Neles, ouvimos Dona Iria, Seu João, Dona Alzira, Dona Maria Amélia, Seu Feijão, Seu Chapéu, Dona Duda e Dona Mida. Seus discursos às vezes são de nostalgia, às vezes de encantamento com o presente; às vezes falam do inevitável deslocamento que o passar dos anos provoca nos mais velhos, às vezes esse deslocamento dá ao expectador uma idéia quase íntima do que é viver uma cidade sendo transformada ao longo de oito ou nove décadas. O respeito com que Morro da Conceição trata seus entrevistados é, talvez, o melhor presente que a platéia pode dele esperar. É um respeito de quem ouve histórias na sala de jantar e quer aprender sobre um passado que já não existe mais. E o passado, sem exceção, é para todos os personagens um certo motor de propulsão, que está ali consolando e amenizando o medo do fim.

Em Morro da Conceição, há uma poesia que se esmera entre as entrevistas, que se estampa nas fotografias antigas e se apresenta nas escolhas de uma diretora consciente de seu trabalho. A simplicidade desse documentário parece ser a razão motivadora de uma busca lírica. Morro da Conceição é a prova de que onde há vida, há boas histórias. O problema, o único problema, é imaginar que o cinema documentário deva seguir esse padrão como meta, como único caminho possível. Não é verdade e já há exemplos brasileiros que demonstram que não.

Voltando a Eduardo Coutinho, ele próprio condena essa visão generalizada de que seu exemplo é o melhor exemplo. Como se existisse um “Dogma” brasileiro sobre os documentários, que proibisse a narração, a música, ou qualquer intervenção autoral que pudesse ser um caminho para o pecado da manipulação. Há aí uma imensa discussão ética sobre o que é e não é justo de manipular, sobre até onde o rótulo “documentário” suporta as técnicas da ficção, sobre até onde as ferramentas do cinema clássico-narrativo podem ser incorporadas no cinema documental. O certo é que todas essas fronteiras já foram quebradas, no entanto sem conseguir esgotar o princípio da questão. E a cada passo renovam-se as mesmas dúvidas.

terça-feira, outubro 04, 2005

Eros


Eros é um dos mais célebres moradores do Olimpo. Acabou, no entanto, virando pastiche de si mesmo ao longo dos séculos. Eros, entidade que representa a atenção carnal, o desejo irreprimível, deus que permanece em Dionísio. Numa visão superficial, porém não falha da psicanálise, Eros moldou o homem, sua psique. O óbvio é que em um filme que leve como título a alcunha de tal deus, seja o sexo sua linha narrativa. O menos óbvio, porém, são as escolhas que os produtores fizeram para essa representação do sexo contemporâneo, porém ficcional: Michelangelo Antonioni, Steven Soderbergh e Wong Kar-wai. Três cineastas díspares, de três continentes diferentes.

O primeiro, um quase mito do cinema: Antonioni. Surpreendente encontrar o que talvez seja a última realização do mestre de Blow-up e Teorema. Surpreendente percebê-lo lúcido em sua atividade de cineasta aos 93 anos. Eros é um filme de episódios, três capítulos, um para cada diretor convidado. Antonioni o abre e discute seu tema favorito, o que norteou toda a sua carreira de cineasta engajado, de cineasta autor, artista: a burguesia e sua decadência moral.

Como é de se esperar, Antonioni apresenta uma história recheada de símbolos. Ler um filme desse cineasta italiano deve ser um trabalho a ser feito por camadas. São necessárias várias leituras até se chegar ao cerne, embora muito provavelmente existam outras possíveis, das mais superficiais às mais eruditas.

A primeira leitura: um casal de burgueses. Uma relação em crise, que o menor descuido leva o outro à impaciência, a discussões e brigas. Um homem que busca outra mulher para suprir o que o casamento já não lhe oferece — talvez a alegria do desconhecido. Um homem que parece ter mais cuidado com seu automóvel do que a mulher que um dia disse ter amado. Duas belas mulheres. Uma traída e outra motivo da traição; uma que cria cavalos e outra que é incógnita; uma que é presa aos ditames de uma moral em fase de mutação, outra que é liberta de tudo, isolada do mundo.

Uma outra leitura: um casal de burgueses. Uma mulher que oferece-se nua a um marido que não mais a enxerga, que está preso numa rotina que lhe desagrada. Uma outra mulher que é motriz de uma traição. Mas traição apenas porque este homem não entende que as duas são a mesma mulher. Uma que anda em todos os lugares com os seios à mostra. Uma outra que veste casaco de couro, quando parece ser verão. Uma mulher que toma banho de sol e outra que mora numa torre, encastelada do mundo, como algo prometido, prestes a ser resgatado. Uma mulher que se locomove no banco do carona; uma outra que dirige um automóvel que não cabe na garagem daquele homem perdido entre o querer e o não querer.

Antonioni propõe uma história de metáforas sobre o bem-querer e a culpa. Sintomaticamente, e talvez simploriamente, aponta para a visão de mundo capitalista os desencontros desses amantes. Simplório porque datado; sintomático porque ainda necessária e esquecida tal discussão. Datado em forma, o filme parece ter saído da década de 1970. Entretanto, não menor por isso.

O segundo episósio, Equilíbrio, leva a assinatura de Soderbergh. Diretor de obras conceituais como Kafka; de filmes sérios como Traffic; ou de caça-níqueis como Erin Brockovich, Soderbergh virou um queridinho dos estúdios americanos. É um cineasta plural, que tenta carregar duas carreiras distintas, a de realizador de filmes Blockbusters, vide seu último 12 Homens e Outro Segredo e de filmes mais alternativos. Neste Eros, sua participação parece ser uma junção destes dois cineastas.

Equilíbrio, de longe é o mais banal dos três episódios. O que não quer dizer que seja ruim, apenas não tão necessário. O problema é que ele soa um tanto deslocado, perdido entre duas boas obras. Um pouco por ter um tom cômico, enquanto os outros são mais sérios, dramáticos até.

Soderbergh recorta o tema proposto a partir da visão freudiana, e faz isso descaradamente. As primeiras imagens, carregadas de uma beleza plástica azul e oscilante, é um sonho. O sonho de um homem ansioso com seus negócios, com sua falta de criatividade. Mas um sonho sobre sexo e traição. Esse homem estará, no dia seguinte, no consultório de seu psicanalista para relatá-lo. Essa é a maior parte da história, e o que há de mais cômico.

Soderbergh costuma ser didático em seus filmes. Mesmo quando mais ousa, ele o faz a partir de algum rigor no formato de seu experimento. Faz isso para não desagradar, provavelmente para não correr maiores riscos do que já corre, quando se equilibra pelos caminhos do cinema independente americano. Por isso, há três fotografias distintas em Equilíbrio. A primeira azul, a segunda preto e branco e a terceira em tons ocres. É um recurso largamente utilizado no cinema e que ele mesmo já lançou mão em Traffic, para delimitar os vários núcleos narrativos.

Enquanto o homem relata seu sonho e nele se aprofunda, seu psicanalista espreita alguém que não chegaremos a saber quem é. Espreita com binóculos e tentar chamar sua atenção com aviões de papel que joga da janela. O homem não percebe pois está imerso na sua tentativa de reconstrução do sonho. Equilíbrio porque no fim não saberemos o que é sonho e o que é realidade. Porque todos os elementos se misturam e se mostram palpáveis. Não há muito mais o que dizer. Quando não são geniais, as comédias parecem ser filmes menores, muito embora não seja sempre o caso.

Wong Kar-wai assina o terceiro episódio de Eros. É dele o propalado Amor à Flor da Pele e o esperadíssimo 2046. É dele este A Mão, que conta sobre o amor paciente de um alfaiate por uma prostituta. Dos três, este é o mais dramático, é o que não tem receio de apelar para os choros e as impossibilidades do querer. É o que bate com força no espectador, e não à toa foi escolhido para fechar o filme. Também é o que carrega consigo mais poesia, mais dor.

Na ficção de Wong Kar-wai, o amor e o desejo são quase sinônimos de plumas e paetês. A direção de arte é quase um personagem à parte. As roupas, os brilhos, os espelhos, tudo compõem a narrativa. Em A Mão, aliás, os espelhos abarcam grande parte dos planos pontos de vista dos personagens. Isso porque a prostituta é a representação maior da vaidade. E seu alfaiate, a ferramenta para satisfazê-la. Por isso ela nega o sexo. Ela o dar apenas em parte, apenas um pequeno fragmento do que se especializou em vender. Ela o toca para prendê-lo, e isso apenas uma vez. É interessante, no entanto, como Wong Kar-wai vai trabalhar a relação do não casal. Não são amantes; tão pouco são cliente(s) e vendedor(es). É uma relação ao avesso. Uma relação de um alfaiate que não cobra por suas roupas na esperança de conquistar uma prostituta; uma prostitua que nega-lhe o sexo, num misto de culpa pelo amor que o homem sente e na crueldade de mantê-lo presente.

quarta-feira, setembro 07, 2005

Conversando com Mamãe

Reconstruindo um viver

Há algo que norteia e unifica o cinema argentino contemporâneo. Em geral, essa nova safra de filmes tenta identificar a cultura de seu povo, seus problemas financeiros, suas pequenas e grandes mazelas. Em Conversando com Mamãe, de Santiago Carlos Olves, não é diferente. O filme, através de um microcosmo, de uma única relação familiar, pretende radiografar as relações do povo argentino com a periclitante situação financeira exposta ao mundo pelos panelaços de 2001.

E essas são as primeiras imagens de Conversando com Mamãe, cenas gravadas em vídeo dos protestos que arrebataram o país e culminaram na fuga do então presidente Fernando de la Rúa. Assim, a primeira escolha de Santiago Carlos Olves é a utilização do vídeo. Não apenas porque é nesse formato que encontram-se as imagens dos protestos, mas porque com a falta de precisão das imagens, com o vídeo trêmulo das reportagens, Conversando com Mamãe agrega um valor histórico e irretocável. Aquela pouca resolução típica de imagens captadas em vídeo diz, “foi isso que nos aconteceu”, e não é preciso explicar mais nada.

No âmbito ficcional de Conversando com Mamãe, vê-se a reaproximação do filho Jaime com a mãe octogenária. Jaime é interpretado por Eduardo Blanco, conhecido no Brasil pelo seu papel em O Filho da Noiva, de Juan Jose Campanella. A mãe fica a cargo de China Zorrilla. Mãe e filho se reencontram para reconstruir uma relação, assim como o país que inicia sua reconstrução, em meio à crise; assim como a mãe, que aos 82 anos tenta recomeçar, com um namorado; assim como Jaime, que recomeçará, com um divórcio. Essa vontade de reinício é uma constante nesta crônica da Argentina.

Dentre os personagens explorados, o único que parece estar preso a um antigo país e seu modo de vida é a mulher de Jaime, Dorita (Silvina Bosco). Neste ponto o filme demonstra uma visão um tanto maniqueísta, mas serve para ilustrar a dor de uma classe média empobrecida, que agonizava as perdas do status e do padrão de vida. Há um diálogo que explicita bem esse conflito, quando Jaime tentando salvar o casamento se reaproxima da mulher. Ela o explica que sua infelicidade está nessa nova vida que é obrigada a viver. Ela refere-se às privações financeiras, ao fato de ter tido o carro da família vendido, aos projetos de se desfazer de um segundo apartamento e de, provavelmente, precisar se mudar para outro país. Tudo motivado pelo recente desemprego do marido.

Vender um apartamento não seria necessariamente um problema, mas o complicador da questão está no fato de que a mãe de Jaime mora de favor no imóvel. Jaime, então, vê-se obrigado a todos os dias visitar a mãe, na tentativa de convencê-la a ir morar com ele para, desse modo, poder se desfazer do bem. É nessa nova rotina que Jaime reencontra a mãe, revive seu passado e redescobre valores que para ele estavam perdidos.

Conversando com Mamãe tem a grandeza de apresentar atuações e diálogos coerentes e recheados de vida. Quem mora na distância da família saberá identificar bem esses elementos de conversas que só o tempo e a ausência criam. Por outro lado, o que existe de belo e verdadeiro no texto, perde-se quase que completamente quando o diretor Santiago Carlos Olves ousa cinematograficamente. Na tentativa de fazer uma crônica não só política e familiar, mas poética e lírica, o filme sucumbe a cada flash-back. Porque o resultado é por demais didático e piegas. Deveria ter acredito na força do texto e deixado o preto e branco e o sépia, para outra ocasião.

domingo, agosto 21, 2005

Menina Santa


Como num toque de theremin

Há em Menina Santa, segundo filme da argentina Lucrecia Martel (de O Pântano), uma contemplação sobre a fronteira entre o lícito e o proibido. Em um filme em que os temas centrais são o corpo e a religiosidade, a câmera busca em duas meninas em início de puberdade, seu foco narrativo. No entanto, parece pouco tentar aprisionar uma obra deste porte em apenas duas palavras: corpo e religião. Menina Santa não se resume apenas a isso, porque a todo o tempo o filme parece fugir do maniqueísmo e das explicações fáceis.

No início de Menina Santa, ouvimos uma música sacra. Voz e piano. Uma mulher canta e chora. As lágrimas interrompem de tempos em tempos seu canto. Não sabemos o porquê de seu choro e não iremos descobrir. Podemos, desse modo, apenas lançar hipóteses mal acabadas. É assim que Lucrecia Martel apresenta o início de sua história. Nos pomos nos lugares das duas jovens que cochicham procurando uma explicação para aquilo que acontece. Não é banal. O filme se inicia deixando claro quais sãos as regras. Assim, aos poucos o espectador vai se acostumando a não procurar as respostas na própria película.

Amália e Josefina são as garotas que conversam aos cochichos. Ambas exercem com fervor a fé praticada nas aulas de catequese. Ambas estão a um passo da descoberta de suas sexualidades. Amália mora com a mãe em um hotel antigo e barato. Divide com ela a mesma cama e está acostumada com a pouca privacidade e com o pouco espaço.

Um hotel é um lugar fadado ao efêmero. Tentar transformar esse ambiente de eterna mutação em um lar, é assumir para si relações sociais passageiras e inconstantes. É crer no que não há tempo de se consolidar. É viver acostumado ao entra e sai das faxineiras e aos olhares curiosos dos clientes. Lucrecia Martel escolhe esse ambiente para contar sua história.

Em paralelo, Menina Santa desenvolve a passagem do médico Jano, um psiquiatra que está hospedado ali para participar de um congresso científico. Os dois terão seus caminhos cruzados quando ambos dirigem-se a uma pequena concentração, onde um músico entoa Debussy através de um theremin.

Theremin é um instrumento estranho. Apontado como o primeiro dos eletrônicos, foi criado por volta de 1919 pelo russo Leon Theremin. O Theremin emite notas sem que o músico o toque. É um instrumento não tátil. Suas notas são produzidas a partir de modificações no campo eletromagnético que o aparelho musical gera. E o músico faz suas melodias com as mãos no ar. Esse theremin irá, a partir daí, permear e pontuar a narrativa do filme.

É ouvindo a apresentação desse músico que Amália percebe a aproximação do psiquiatra. Ele se aproveita da aglomeração para encostar seu sexo na garota. Cria-se em Amália um misto de paixão e compaixão.

A inclusão do theremin surge como metáfora. O instrumento está ali para lembrar, para sublinhar sobre o toque, o tato. Para acrescentar à narrativa algo sobre a proibição daquele contato entre o homem e a menina. O som que um theremin entoa tem algo de etéreo, nada parecido com a brutalidade da atitude daquele médico. O theremin surge para falar da contradição do amor que Amália irá sentir, seja um amor sacro ou profano. Lícito pela vontade de redenção cristã-católica que Amália quer impor ao homem; ilícito pelo óbvio desejo sexual da descoberta.

Menina Santa falará sobre o não toque e sobre a descoberta; sobre a ingenuidade das meninas e sobre a perversidade dos adultos. Irá explorar sempre dois eixos de discussão, sempre sem separá-los. A dualidade de Menina Santa permeia não só o seu discurso, mas transborda para sua própria estratégia narrativa.

Logo no início, quando a menina está deitada na cama com a mãe, há um facho de luz do sol que corta o leito. Enquanto que o quarto permanece numa certa penumbra, aquela luz marca com força a presença do dia. É o mesmo sendo dito de outra forma, misturado na mis-en-scène, na ação. Além disso, o sol penetra naquele quarto através de uma fresta. As frestas, por conseqüência, também serão comuns e necessárias ao longo da película. Lucrecia Martel é responsável por uma câmera precisa. A decupagem (modo de enquadrar e mover a câmera) é feita com extremo rigor, porque o olhar da câmera está sempre em busca do que é privado e proibido. Daí a presença das frestas, dos espelhos que refletem ao acaso, das mesas que ocultam o que por baixo acontece. A câmera de Martel parece sempre estar presente ao acaso, parece sempre descortinar o que é privado sem intenção de fazê-lo. Da mesma forma que os sons do filme não se restringem aos seus ambientes.

Nas aulas de catequese, Josefina e Amália estudam a vocação. Amália, compenetrada em descobrir sua missão, acredita que está no médico o seu destino. Toma para si o dever de mudar aquele homem, de salvá-lo. Amália entende que poderá salvá-lo através de seu amor, mais uma vez um conceito que está imbuído de duplicidades e poucas respostas. Outros focos de discussão vão sendo levantados em cada personagem que o filme acompanha. Josefina mantém um relacionamento de descobertas sexuais com um parente próximo. Pode-se entendê-lo como um irmão ou um primo. O roteiro não deixa claro, como se quisesse fazer-nos trabalhar várias questões morais ao mesmo tempo, porque uma coisa é uma jovem e o sexo precoce, outra é o incesto. Para Josefina, no entanto, há pouco (ou nada) de anormal naquele ato. Assim como Amália não vê nada de estranho no seu amor platônico pelo homem, embora façam segredo de seus atos.

Menina Santa vai apresentando cada uma dessas (des)vias morais. Pouco a pouco vai construindo e descontruindo os conceitos. De tal forma que nas seqüências finais, sem perceber, há uma completa empatia do público com o que começa a se descortinar. A mãe Helena, o médico Jano, as garotas Amália e Josefina: intrincados todos numa história de amor, de não toque, de proibições e culpas. No fim, entretanto, sobra-nos as duas meninas que, de tão santas, parecem não perceber os rumos que tudo tomou. Elas estão felizes e livres.

terça-feira, agosto 16, 2005

Casa Vazia

A leveza do silêncio de Kim Ki-duk

Casa Vazia, pessoas vazias. Esta é a metáfora que norteia e inicia o último filme de Kim Ki-duk, cineasta sul-coreano que ficou conhecido por aqui com o anterior Primavera, verão, outono, inverno... primavera . Em Casa Vazia, um homem procura em residências de donos ausentes, um lar ou um cotidiano que, parece, não possui. Escolhe casas ao acaso, apenas com a certeza da ausência de seus moradores. Passa dias nelas. Não as rouba. Parece retirar delas apenas o sentimento de lar. É um lar uma casa sem pessoas? Ao menos ele retira delas os ecos de uma vida alheia. Fotografa-se ao lado de velhas fotos de família; lava as roupas sujas dos moradores em férias; conserta objetos quebrados, numa obsessão que remete a uma troca, como uma espécie de pagamento pelos dias de uma falsa vida que ganha ali.

À primeira vista pode lembrar o politizado Edukators, do alemão Hans Weingartner, mas as semelhanças terminam na primeira impressão. Enquanto Edukators invadia residências para propor um discurso revolucionário, Casa Vazia as invade propondo autodescobrimento. Pode até parecer um filme resposta, porque em Edukators os personagens entravam nas mansões como ato de protesto, em uma espécie de terrorismo psicológico. Casa Vazia também fala das ilusões do mundo contemporâneo, mas o faz sem estardalhaço, sem utilizar-se de manifestos. Além disso, o filme de Kim Ki-duk quer discutir o privado. E o faz com rigor.

Um dia, um erro. Numa das casas, há uma mulher que chora um mau casamento. O erro torna-se um encontro silencioso, uma fuga para ela e uma redenção para ele. Constrói-se aos poucos um relacionamento sem diálogos. A ilusão está na fala, é o que o filme nos diz. A verdade transparece, vai além. A mulher chora a surra que levou do marido, do homem que não mais ama. Cala-se e fecha-se a ele na impossibilidade de enganar(-se). Foge da violência e dos gritos do marido. Segue o homem em suas casas vazias. Ajuda-o a encontrar as residências fechadas, conserta os aparelhos quebrados, lava as roupas, cozinha. Toma para si a mesma busca do homem que entrou em sua casa e o faz ao seu lado. O ama.

Em cada casa que o homem misterioso entra, é possível reconstruir fragmentos da vida que habita ali. Kim Ki-duk faz com maestria uma narrativa silenciosa. Desvenda a história como esse protagonista desvenda as casas em que entra. Fragmentos de vidas expõem-se através de fotografias, vídeos cassetes, roupas, quadros e livros. Ao mesmo tempo, parece que a mis-en-scène que Kim Ki-duk escolhe para o filme é uma auto-referência às próprias descobertas do protagonista: primeiro o silêncio, depois a leveza e a invisibilidade.

Degrau a degrau, esse homem que nada sabemos vai se tornando menos e menos perceptível à medida que o filme transcorre. Torna-se cada vez mais invisível, até parecer um fantasma, uma mera sensação aos moradores das casas que já visitou. Faz isso pelo amor que encontrou naquela mulher.

Se no início ele era furtivo, no fim se torna ausente. Se no início o personagem era uma metáfora para o esvaziamento das pessoas, no fim sua permanente ausência torna-se uma metáfora para a entrega. O filme se subverte. Alcança no extremo de seu conceito uma dimensão paralela para seu discurso, como a ponta do compasso que passa pelo ângulo zero e 360. São os mesmos e diferentes. Anular-se por amor. Entregar-se no amar.

sábado, julho 30, 2005

Idade da Terra

Era muito caro a Glauber Rocha, ícone maior do Cinema Novo, a quebra dos paradigmas. Glauber era um inconformado e um revolucionário incurável que via na estética do cinema então vigente uma plataforma para a dominação cultural, para o controle dos povos do terceiro mundo e para a perpetuação de uma economia capitalista, burguesa. Talvez com exceção apenas de seu primeiro filme, O Pátio, curta metragem de 1959, Glauber sempre fez política através das imagens em movimento.

Radical em princípios ideológicos/éticos e na forma de captar imagens, Glauber Rocha, filme a filme, vai galgando experimentações e amadurecendo seu intuito frente ao fazer cinema. Embora seja em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) que o cineasta alcança seu maior reconhecimento, é em Idade da Terra (1980), seu derradeiro filme, onde reside seu último grau de aperfeiçoamento. Esse julgamento, é bom deixar claro, leva em consideração o que o próprio Glauber esperava de seu cinema, um fazer anárquico não preso a preceitos narrativos.

E Idade da Terra é uma experimentação não narrativa, assim como ele queria seu cinema revolucionário, com a cara e a poeira do terceiro mundo. Idade da Terra é prosa poética, é um acúmulo de discursos e imagens que juntos tendem a traçar uma radiografia imprecisa dos arroubos socialistas no Brasil pós-anistia. Idade da Terra é uma proposta onírica, neo-surrealista (neo-sul-realista), utilizando palavras do próprio Glauber para conceituar seu cinema, ou seu intuito de cinema.

Em seu último filme, Glauber chega ao ápice de uma proposta que já vinha desenvolvendo desde 1971, quando escreve o manifesto Estética do Sonho. Manifesto que surge em contraposição ao anterior Estética da Fome, de 1965. O primeiro fala da fome como caminho para a revolução, porque a fome gera a violência necessária para a libertação do colonizado, para a libertação do sentimento de colonizado; já o segundo critica essa visão, pois seria o povo “o mito da burguesia”, um retrato pintado pelo dominador, já que a idéia que o povo teria de si próprio seria uma idéia projetada pela burguesia e aceita pelo proletariado. Em Estética do Sonho, Glauber vai afirmar que a verdadeira libertação está na “desrazão”, porque é só na quebra dos paradigmas do próprio pensar que se pode ser independente, porque é apenas no sonho que somos livres. Fome e sonho, política e poesia. Esses serão os nortes em que Glauber irá basear toda a sua obra. Em um primeiro momento achando que a política é o discurso; em um segundo momento achando que a poesia é o que deve sê-lo. No entanto, os dois sempre imbuídos e difusos, nunca totalmente separados.

A última obra de Glauber Rocha é a radicalização do que ele propunha no manifesto de 1971, a ponto de propor que os rolos que compõe o filme a ser projetado não tivessem uma ordem específica. Ficaria a cargo do acaso e do projecionista essa escolha, embora esse querer não tenha sido aceito pela Embrafilme. Talvez por isso, Idade da Terra não tenha créditos, nem iniciais nem finais. Não há sequer o nome do filme impresso sobre a película.

Inicia-se com um plano extremamente longo, em que vê-se um nascer do sol em Brasília. O filme espera todo esse instante do alvorecer, obrigando o espectador a se dar conta de cada detalhe de algo que em seu cotidiano é tão fugaz. É a primeira dica do filme que virá, que já no seu primeiro plano nos diz que sua “narrativa” não é algo usual; que fará com que o público veja um outro cinema, diferente do vigente, diferente da linguagem que é até hoje largamente aceita e comercializada.

A partir daí Idade da Terra irá trabalhar sobre quatro focos, cada um deles tentando sintetizar e desconstruir personagens emblemáticos ao Brasil da época: o índio (Jece Valadão), o negro (Antônio Pitanga), o militar (Tarcísio Meira) e o guerrilheiro (Geraldo del Rey). Além deles, há as mulheres sempre presentes, que ouvem seus discursos ou que clamam pela morte de outro importante personagem do filme, o imperialista Brahms (Maurício do Valle).

A impressão é que Glauber filma tudo à esmo, sem ensaio. A câmera tem a imprecisão comum às imagens de documentário, com seus zooms trêmulos e seu foco mal acabado. Constantemente ouvimos a voz de Glauber dando marcações para os atores ou pedindo para falarem mais alto, sempre pedindo: “mais alto!”. No onírico de Idade da Terra os personagens gritam seus desejos e seus discursos. Fazendo um paralelo, é interessante notar que em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a maior parte do filme é sussurrada. Glauber também faz trechos discursados em off, seja para falar do Brasil pobre, do terceiro mundo e suas contradições, seja para dar impressões sobre o filme que gostaria de ter feito quando soube da morte do cineasta/poeta Pasolini. Glauber diz que queria filmar sobre o Cristo, mas um cristo venerado no momento da ressurreição e não o do calvário, tão apregoado pelas igrejas. Porque Glauber queria tratar da revolução como libertação, como a boa nova para o povo com sua fome crônica.

O messianismo, sempre presente na obra do cineasta, também aparece em Idade da Terra. Todos os quatro personagens, o negro, o militar, o índio e o guerrilheiro, estão no filme imbuídos de um discurso profético, às vezes redentor, às vezes apocalíptico. Há um momento em que o personagem de Antônio Pitanga, o mais místico deles, surge curando um cego, fazendo a multiplicação da comida e, numa ironia glauberiana, sanando a sede do povo com a multiplicação da pepsi-cola. É o mesmo personagem que irá aparecer completamente nu pedindo o amor de uma mulher, numa simbologia que o remete à reintegração da natureza.

A parte apocalíptica fica para o personagem de Tarcísio Meira que, às margens da Baía de Guanabara, fala de uma bomba atômica que irá destruir a todos; fala em outras palavras de algo que está para acontecer e se ressente com sua impotência. E xinga e xinga e xinga: “isso aqui é a cloaca do universo”, e a câmera corre a focar o lixo que se acumula à beira das pedras.

Idade da Terra seria atonal, se fosse uma sinfonia. São muitos os discursos que se interpõem além do o que trata da libertação e da revolução. Como quando a montagem assume no meio de seu discurso fílmico um acidente de trabalho e mostra o ator Maurício do Valle se lamentando de dor por causa de uma topada; como quando assume os olhares do povo que anda na rua e não está ciente do que está sendo filmado e volta seus olhos para a câmera (olhares que denunciam o falso da ficção e, por isso mesmo, falam sobre o real do documental); como quando se assumem repetições do que é dito (há muitas falas repetidas à exaustão); como quando Jece Valadão invade uma procissão para gritar seu texto no meio dos religiosos; como quando vê-se o personagem guerrilheiro sendo untado de sangue falso para a cena seguinte.

Assistir Idade da Terra e tentar costurar com precisão a relação de todos esses fragmentos de falas, offs, discursos e poesias é uma tarefa árdua. Melhor é apreciar com os olhos abertos para as imagens, mas como se fechados ao dormir. Tentar usar a “desrazão”, libertar-se das regras petrificados pelo cinema narrativo. Idade da Terra é um dos filmes mais viscerais do cinema brasileiro e deve ser visto com a mesma visceralidade. É preciso comer as imagens.

terça-feira, julho 26, 2005

A Vida Marinha de Steve Zissou


Wes Anderson é um diretor inventivo. Ele não está criando a roda, mas a exemplo de outros como Jim Jarmush (Sobre Café e Cigarros), Paul Thomas Anderson (Magnólia) e Charlie Kaufman (roteirista de Quero Ser John Malkovich), ele vem traçando um caminho distante do que o público americano está acostumado a assistir, mesmo dentro do dito cinema independente.

Wes Anderson não inventou a roda nesse A Vida Marinha de Steve Zissou ou no seu anterior Os Excêntricos Tenenbaums, mas criou um jeito particular de contar histórias. Assim como é possível reconhecer de olhos fechados as estratégias narrativas do brasileiro Jorge Furtado (O Homem que Copiava), é possível em poucos minutos de projeção reconhecer o que há de Wes Anderson num filme. Poderia se dizer o mesmo dos outros citados aí em cima, cada qual com seu estilo próprio, cada qual parecendo carregar um frescor que faz falta no cinemão de pipoca e shopping center.

Esse jeito particular que Wes Anderson filma nos dá a entender que captar imagens em movimento é uma brincadeira de criança; que toda sua mis-en-scéne é coerente porque ela é exatamente isso e nada mais que uma brincadeira de contar histórias. É como entrar no teatro e aceitar o lúdico, é como assistir Fellini e saber que ele está falando de sonhos e picadeiros. É esse lúdico que no A Vida Marinha permite um Seu Jorge cantando versões em português de David Bowie, acompanhado apenas pelo seu violão.

A Vida Marinha de Steve Zissou é a história de um homem que quer fechar sua carreira de documentarista náutico com um grande filme e ser perdoado pela crítica e público que o renegaram. Steve Zissou manteve uma certa fama nos primeiros anos de carreira, mas aos poucos foi caindo no esquecimento e seus empreendimentos passaram a dar prejuízos. Steve Zissou é um Jacque Cousteau sem espírito científico. Toda sua equipe é, como o próprio protagonista explica, uma farsa. É uma reunião de amigos que pouco sabiam sobre biologia marinha ou oceanografia. O cérebro atrás da equipe Zissou é a mulher de Steve, que além de lembrar-lhe os nomes das espécies em latim, sabe planejar estratégias e os investimentos.

Steve Zissou é interpretado por Bill Murray, que empresta ao personagem aquela feição característica de impassível tédio. Um tédio de blasé, como diria Adriana Calcanhoto em Água Perrier, porque Zissou é um egocêntrico que não se dá conta do seu egoísmo. É um personagem profundamente entristecido com a derrocada de sua carreira e que tem como meta apenas o seu filme.

A Vida Marinha começa com cenas da primeira parte do filme que Steve Zissou está rodando. O formato é de um documentário burocrático e mal produzido, mas que tem um apelo dramático incontestável. Numa das expedições da equipe, uma espécie rara de tubarão devora um membro da equipe. A primeira parte acaba aí. A projeção é feita para convidados, numa tentativa de levantar fundos para o resto do projeto. E o projeto de Zissou é encontrar o tubarão e matá-lo, dinamitá-lo, como sugere, frente ao tamanho colossal da criatura.

É estranho que nos créditos finais Wes Anderson dedique o filme a Jacque Cousteau, mas esqueça de Herman Melville e seu romance Moby Dick, que narra a odisséia de um homem que cruza os oceanos em busca da baleia branca e tudo perde na tentativa de matá-la. Se Wes Anderson esquece Melville, de Cousteau ele não poupa referências, seja através do gorro vermelho característico ou pelo modo de apresentar algumas imagens submarinas.

Steve Zissou consegue a verba com a promessa de não matar o tubarão. Exigência de alguma sociedade protetora de animais. Antes de embarcar descobre um filho de um antigo relacionamento e o integra à equipe. É esse filho que irá dar a Steve elementos para seu encontro consigo, seu autoconhecimento. É outra estratégia narrativa de Melville e de tantos outros contadores de histórias, da literatura e do cinema: a viagem como uma ferramenta para a busca de si. A medida que a viagem prossegue, mais e mais o personagem de Bill Murray vai se dando conta de quem é, de seus erros e de seu egoísmo.

A Vida Marinha trata dessas buscas que fazemos, dos sonhos particulares que ninguém tem acesso. É por isso que na primeira parte do documentário não vemos o tubarão. Chegamos mesmo a duvidar de sua existência. Alguém pergunta ao diretor-comandante se aquilo não é uma jogada de marketing. E chegamos a crer que sim. Talvez por isso, todo o mundo marinho seja nos apresentado de forma lúdica. Porque se a paixão do explorador é o oceano, ele deve nos aparecer como uma brincadeira.

Essa relação do sonho com a infância é a todo momento pontuada pelo filme. Os que crêem cegamente em Seteve são crianças; os peixes que ele tanto gosta têm cores que só o onírico poderia criar; seu barco nos é apresentado como numa maquete ou uma casa de bonecas. A aproximação com seu filho, que ele nega-se a aceitar como tal, é o que faz perceber isso. Embora o filho encontrado seja um adulto, há nele uma carência infantil pelo pai. No fim da busca, quando Steve encontra ao tubarão e a si mesmo, ele entende seu medo da solidão e questiona-se se a criatura lembraria dele. Provavelmente não. Ao contrário da Moby Dick, o tubarão de Wes Anderson seguiu sua rota de migração sem dar maiores atenções às pequenas vaidades humanas. Steve Zissou entende o vazio de sua busca, de sua vida.

Motion Pictures


Intimidade: por Andy Warhol

Doze telas em movimento. Retratos filmados de personalidades e de anônimos que Andy Warhol pretendia famosos. Tratam-se de alguns dos conhecidos experimentos que o homem da Pop Art fez entre os anos de 1963 e 1968, quando conduziu a Silver Factory, ateliê de onde surgiram rótulos de sopas, retratos em polaroids, retratos em serigrafia, banda de rock e até um Basquiat.

Andy Warhol, fascinado pela imagem e pelo mito, se dedicou à arte em série. Desconstruía os símbolos para criar novos, inventou a eternização do kitsch. Motion Pictures, exposição que passou pelo Rio de Janeiro e seguiu para São Paulo, é um reflexo dessas tentativas de construção e desconstrução imagéticas.

Com suas pinturas filmadas, Andy Warhol também parece perguntar sobre o futuro do cinema; especular caminhos não explorados até então. Mas filmes de pessoas que nada fazem ou pouco fazem não são propriamente filmes, desde que excetuemos o suporte em que foi captado, a película. Andy Warhol filmava não filmes e fazia, assim, não quadros, já que os quadros propriamente não se mexem, desde que excetuemos as experiências de Soto e suas telas recheadas daquelas ilusões que nos deixam tontos. Talvez esteja aí a importância dessas obras, essa discussão iniciada pelo movimento Dadaísta, sobre o que é e o que não é arte, quadro, pintura, literatura, música... Não há respostas satisfatórias desde que Duchamp inventou de colocar aquele urinol em um museu.

Andy Warhol filmou muita coisa. Desde retratos de 5 minutos, cada, ao Empire States por cerca de 8 horas ininterruptas; um homem comendo cogumelos por cerca de uma hora e outro dormindo suas 7 horas. Filmou também um ator recebendo uma felação, mas teve o pudor de deixar a câmera em close, no seu rosto. Filmou beijos de hetero e homossexuais e uma partida de xadrez, embora esse filme do jogo não faça parte da mostra que chegou ao Brasil através do Museu de Arte Moderna de Nova Yorque, o MoMA.

Motion Pictures, no entanto, é formado apenas por trechos restaurados desses filmes. Vieram em formato de vídeo e são projetados nas paredes dos museus com molduras pretas de grandes dimensões.

É interessante a intimidade que Andy Warhol alcança com seus retratos. Uma leve câmera lenta ajuda na melancolia e os retratados devem ter tido uma boa direção para deixar seus olhares distantes, seus movimentos enfadados.

Um homem mastiga cogumelos e se balança numa cadeira de balançar. A luz chega de fora, por uma janela que não vemos, e é para lá que ele olha, para onde não podemos enxergar. Qualquer interpretação é possível, qualquer não interpretação, também. E nesse balançar e comer, podemos sentir o tédio de uma vida inteira ou uma tristeza sem nome.

Nos retratos de menor duração, os ditos Screen Tests, há a mesma estratégia “narrativa”. Pessoas olham o vazio ou a câmera. Pouco fazem. Uma tenta comer cabelo, mas os demais, nada, ou sorriem até envergonhados frente à câmera 16mm. Salvador Dali, o mais célebre dos retratados dessa mostra, aparece de cabeça para baixo. Uma alusão óbvia e até ingênua da sua obra surrealista.

A tela intitulada Blow job mostra um homem também sentado, reencostado a uma parede. Alguém o faz um boquete, daí o título original. Só vemos o seu rosto que, entre espasmos de prazer, acende um cigarro ou olha para a câmera, para nós espectadores de uma cena real. Olha com lasciva, embora não cheguemos a crer no seu prazer, talvez por ser cru demais, talvez por ser um prazer mudo, talvez por estarmos surdos frente à tela.

São telas sem som, quadros que se mexem em branco e preto, mas não emitem barulho. Talvez o Velvet Underground, junto com Nico, fosse a trilha sonora que Andy Warhol procurava para seus quadros. Talvez por isso tenha construído a carreira da banda. Talvez...

Casa de Areia

Cem anos de areia

O plano é longo, evasivo. Um plano geral que espera desbravadores de um deserto atravessá-lo de ponta a ponta. Um pequeno grupo de pessoas, carregando mantimentos e animais, lutando contra o cansaço da caminhada, contra o sol e a areia que a tudo dificulta. A saga começa em 1910, nos Lençóis Maranhenses, e será lá que terminará, décadas depois, num círculo sem saída. Casa de Areia, quarto filme de Andrucha Waddington, é uma alegoria da solidão e da ilusão humana, mesmo que para tal vá tão longe para contar sua história.

No momento seguinte estão Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, mãe e filha (em vida e em enredo), exaustas, mas ainda caminhando contra a areia e o sol. Daquela primeira monotonia, de espaços largos e vasto, partiu-se para um close, que agora começa a detalhar pela contradição os personagens de tal desventura. Lembra a chegada dos Buendia na terra prometida de Macondo, em Cem Anos de Solidão, do nobel Gabriel Garcia Marquez. A referência é tão clara que Fernanda Montenegro e Fernanda Torres se alternarão nos papéis durante o restante do filme. A medida que a filha envelhece, a personagem é assumida pela Fernanda Montenegro e a neta pela Fernanda Torres. As trocas de papéis acompanharão a fita durante as gerações em que a lente focará a história. Em Cem Anos de Solidão, recurso semelhante é utilizado quando Gabo mistura os nomes dos filhos e dos netos e, com isso, alcança uma sensação de repetição no círculo de nascimentos e mortes da família.

Neste primeiro momento do filme, Fernanda Torres está a cargo do papel da filha prometida e casada com um homem mais velho. O marido é interpretado surpreendentemente por Ruy Guerra, diretor de filmes como Os Fuzis e Estorvo. É um homem de algumas posses, que viu nos Lençóis a cobiça de uma vida melhor, o sonho feudal de terras, a descendência patriarcal. Ainda estamos nos primeiros minutos de Casa de Areia e tudo isso já foi entredito, exposto entre os fotogramas. Todas as referências sociais do personagem são apenas intuídas, assim como grande parte das informações contidas no longa-metragem. O filme ainda tem participação de Seu Jorge - o músico que deu o ponta-pé no grupo Farofa Carioca e interpretou Mané Galinha em Cidade de Deus - e Luiz Melodia, aquele da famosa Magrelinha.

Sobre uma duna dos Lençóis Maranhenses, uma casa é construída pelos empregados para abrigar a família no meio do nada, mesmo sob a relutância da esposa, que preferiria ir embora. Mesmo ao saber da gravidez da mulher, o patriarca não cede. Quer que o filho nasça ali, profetiza-o homem e espera o dia em que o primogênito terá forças para ajudá-lo na lida do dia-a-dia. Mas o marido morre e o filho nasce mulher. Com a morte, os empregados fogem, roubam mãe e filha e deixam-nas para trás.

A distância, a gravidez, depois a filha muito nova, a mãe velha e o quase total isolamento impedem que elas partam. Ao longo das décadas seguintes haverá sempre uma vontade visceral de partir do nada para algum lugar. No entanto, sempre permanecerá essa impossibilidade. Mas a vontade em alguns casos se apazigua, acomoda-se, e a viúva que tanto lutou para fugir se vê velha e desistente. E no retorno do círculo, é a neta, a filha do explorador Vasco, que toma para si a perspectiva de viver longe dali.

Em Casa de Areia, os meses e os anos correm sem serem vistos ou anunciados. Não há festas para celebrar qualquer data, qualquer aniversário ou novo ano. Há apenas uma aparente mas bem solucionada confusão na troca de papéis que demarcam o avanço dos anos, marcada por elipses precisas, como a que mostra num salto de mais de duas décadas, aviões partindo para a Segunda Grande Guerra.

O som, que pouco ecoa além do vento que sopra a areia, também é um personagem importante na história. Laborioso foi o feito de construir o som em Casa de Areia, mostrar as nuances de cada uivo e o silêncio como parte integrante dessas solidões. Logo no início do filme, vê-se uma fotografia em que a primeira personagem de Fernanda Torres está sentada ao lado de um piano. O cuidado com que trata a foto nos diz muito sobre a falta da música em sua vida, sobre os acordes que não mais ouvirá. O silêncio cria mais um dado para a compreensão da personagem, fazendo um arco dramático para o fim do filme, que nego-me a escrever, não pela convenção que dita não entregar os desfechos, mas, sim, por tratar-se de um momento de rara poesia.

A alegoria de Casa de Areia é procurar no areal dos Lençóis uma metáfora para as buscas do homem. Uma busca existencial, que tanto está refletida/projetada em avanços científicos como na arte; tanto no chope da esquina quanto nas salas das universidades. Casa de Areia trata da ilusão e da finitude do ser; trata da solidão urbana, mesmo sem pisar numa avenida de concreto. E para não citar mais uma vez o eterno retorno de Nietzsche, melhor lembrar de Antes da Chuva, de Milcho Manchevski, que diz, “o tempo não espera, porque o círculo não é redondo”.

A Montanha dos Sete Abutres

Com as asas dos urubus

A Montanha dos Sete Abutres é um filme de 1951 que ainda mantém uma atualidade gritante. Ok, é um filme feito há mais de cinco décadas, rodado em preto e branco e protagonizado por Kirk Douglas – na época em que ele ainda fazia papel de mocinho. Ou seja, essa fita de Billy Wilder carrega um estilo imagético já superado pela indústria cinematográfica. Mas o seu discurso não envelheceu em nada, sobretudo quando lembramos que vivemos em tempos de George W. Bush. O filme trata de um assunto exaustivamente discutido nas universidades de comunicação, a credibilidade e imparcialidade jornalística.

Em A Montanha dos Sete Abutres, Kirk Douglas vive o jornalista Charles Tatum, que saiu desempregado dos grandes centros por causa de sua conduta pouco ética. E ele só consegue emprego em um pequeno jornal de uma província do Novo México. Tatum está com o ego ferido. Acostumado com o glamour de Nova Yorque, ele sente-se rebaixado no novo trabalho. Mesmo assim, se mantém no jornal, cobrindo pequenas notícias. Tudo o que ele espera é o dia em que acontecerá um grande acontecimento por aquelas banda. Dessa forma, ele planeja catapultar seu nome de volta à elite da imprensa americana.

E o dia chega quando ele descobre um homem soterrado em uma antiga mina. Tatum vai utilizar aquele incidente da forma que mais lhe convém. Ele manipula a família do homem e faz uma matéria sobre o caso. No dia seguinte, o homem ainda está soterrado. Os curiosos começam a chegar no local e, como ele esperava, a imprensa de Nova Yorque. O jornalista fará de tudo que estiver ao seu alcance para se manter na linha de frente daquela cobertura, inclusive mantendo a vítima do incidente soterrada por mais alguns dias. Como um abutre que circunda em espera do animal moribundo, ele planeja a melhor forma de degustar a refeição futura.

A Montanha... denuncia o que há de mais infame no jornalismo: a manipulação da informação e, o que é pior, a manipulação do fato em si. Tatum finge ajudar a família da vítima e convence o xerife local a ajudá-lo em sua farsa. É uma alegoria que discute até onde vai o poder da imprensa, até que ponto devemos fazer vista grossa para o dito “jornalismo marrom”.

Entretanto, o que há de mais cruel no longa metragem de Billy Wilder é a noção de que praticamente todos estão colaborando de alguma forma para o circo que é literalmente armado em volta daquela tragédia (chegam a montar um parque de diversões, obviamente atraídos pela multidão de curiosos que acampa próximo à mina). Apenas três pessoas parecem não querer aproveitar (de forma lúdica ou financeira) aquela situação: o dono do pequeno jornal, o pai e a mãe do homem soterrado. A própria esposa da vítima, que no início da história ensaia uma fuga com os poucos dólares da caixa registradora do pequeno comércio que são donos, retrocede de sua empreitada ao perceber que poderia ganhar muito dinheiro com o acontecimento. E ganha. Além dos muitos hambúrgueres que vende aos famintos curiosos, ela chega a cobrar a entrada no local.

Dessa forma, A Montanha dos Sete Abutres levanta um questionamento que ultrapassa a mera crítica à imprensa. Billy Wilder afirma em letras garrafais que o problema está é no ser humano. Tatum é apenas o estopim para que essas pessoas se prontifiquem a transparecer alguns dos piores traços de caráter imagináveis. Ele demonstra isso claramente com a corrupção da polícia, com a ganância da esposa ou com a covardia do empreiteiro (que cede à chantagem do xerife que o obriga a fazer o resgate da forma mais difícil e demorada).

De qualquer modo, o filme deixa no fim uma luz de redenção, embora tardia. Ao término da fita, o homem que está soterrado não resiste e morre de pneumonia. Tatum cai em si. O jornalista que fora capaz de enganar tantas pessoas; manter um homem preso em uma mina durante sete dias; capitalizar perversamente o seu “furo” jornalístico, não resiste a culpa de seus atos. É uma conclusão cristã, pois o pecador se pune em busca de algum perdão. É Tatum quem anuncia à multidão a morte do homem. Na mesma penitência, ele desiste de escrever a matéria que o devolveria à elite jornalística. E, por fim, na última seqüência ele retorna cambaleante à redação do pequeno jornal que abandonara. E como São Francisco de Assis que se expropria de toda a riqueza dos pais, Tatum oferece seus serviços de graça ao antigo chefe. A queda do personagem, no último plano do filme, é a metáfora do homem derrotado e humilhado.

Asas do Desejo

Asas da ausência


Berlim ainda estava dividida quando, em 1987, Wim Wenders produziu a sua maior obra, Asas do desejo. O muro, que ruiria dois anos depois, se impunha não apenas como uma instransponível fronteira. A cidade partida (título que hoje o Rio de Janeiro laboriosamente toma emprestado) dividia também famílias, conceitos, ideologias, pessoas.

O Céu sobre Berlim, como diz o título original, é a abrangência desse tema. Wim Wenders não queria falar apenas de um amor impossível, como uma leitura superficial pode levar a crer. Também não tinha a intenção de, nessa alegoria, transformar o filme em um panfleto político. Asas do desejo vai mais além, fala do muro que cada um construiu em torno de si, da inexistência de utopias, da fragilidade de uma época, da ignorância ao outro, do egoísmo, da solidão.

Em Asas do desejo, a câmara acompanha a melancolia de dois anjos. Observa com eles o vácuo em que a criação se tornou e lamenta a cegueira humana. O homem de 1987 não mais vê os anjos, não mais os ouve. Prometeu roubou o fogo; Enkidu possuiu a prostituta; Adão comeu do fruto. Recita o anjo: Quando a criança era criança, ela caminhava com os braços balançando. Ela queria que o riacho fosse um rio, o rio uma torrente e essa poça d´água, o mar. A criança éramos nós. Adultos, fomos destituídos do verdadeiro.

Wim Wenders propõe uma expansão do que o senso comum enxerga no divino. Longe de ser religioso, Asas do desejo busca metáforas para nossa incompletude no arcabouço imagético de uma das mais antigas crenças do homem. Se somos ou não vigiados e protegidos por anjos, o filme não discute. Ele assume o discurso para aprofundar nossas ausências.

E o que não é o desejo, senão a falta? Trabalhando sempre sobre um plano contraditório, Wim Wenders mostra anjos que sentem essa ausência. Como seres etéreos, eles não enxergam as cores (daí a escolha pelo preto e branco) ou as formas; não sentem o áspero ou o liso; o calor ou o frio. Assim, eles também não têm forma. Enxergá-los, capacidade reservada apenas às crianças ainda inocentes, não é função da visão. As lentes de Asas do desejo nos mostram esse mundo privado.

Propõe-se uma concessão e uma troca. É como se os anjos dissessem que deixam-nos ver o mundo com os olhos de criança. Em troca, damos a eles nossos desejos, nossas dores e alegrias. Os anjos de Wim Wenders anseiam pelo efêmero. Há um diálogo antológico em que Damiel e Cassiel externam essa vontade. Nele, perguntam-se o quão prazeroso deve ser beber uma taça de vinho ou retirar os sapatos após um dia de trabalho; o quão humano deve ser dizer talvez ao invés de sempre saber a verdade. Por isso, freqüentam as bibliotecas; por isso, procuram estar ao lado dos desesperados e dos amantes.

A troca é cumprida com a queda do anjo, quando o filme ganha cor e Damiel, perplexo por sentir dor e sangrar, cambaleia por uma Berlim suja e pichada. Chega a ser cômico quando ele pergunta se aquilo que escorre (o sangue) é vermelho. É o seu primeiro contato com o humano e, não à toa, com a presença da morte.

Damiel não cai por renegar Deus. Sua forma humana se dá por um amor profundo à criação, por causa do fascínio que mantém pela única coisa que ele não conhece, que não lhe é palpável. A paixão que sente pela trapezista é o que o arranca do âmbito divino e etéreo. É o eterno clichê do palhaço que ama a trapezista, o mesmo de Romeu e Julieta. Mas no amor proibido de Wim Wenders, a trapezista utiliza asas cenográficas, e essa é a senha para a completude ou para a humana ilusão que um anjo sentirá ao vê-la balançar no circo: a metáfora da contradição, em que todo o discurso fílmico de Asas do desejo é baseado.

Ao cair, o anjo alcança a ausência que tanto almejou. E a falta se inicia pela fome. Diz Wim Wenders que, quando um anjo deixa seu mundo, traz consigo uma armadura. E de que serve para um caído, um objeto de luta celestial? Ao vendê-la, Damiel enfim está imerso no mundo humano, pois ele negociou o último resquício de seu passado atemporal, imaterial. E já se vai longe o tempo em que se dizia: Quando a criança era criança, ela não tinha opinião sobre nada. Não tinha nenhum hábito. Ela se sentava de pernas cruzadas, saía correndo de repente. Tinha um redemoinho no cabelo e não fazia caras quando ia tirar fotografia.

Orginialmente publicado em www.educacaopublica.rj.gov.br

Kill Bill

Irônico, cínico, violento, pós-moderno

Quanto já se falou sobre os mais de 80 filmes em que Quentin Tarantino se "inspirou" para escrever apenas a primeira parte do seu Kill Bill? Quantos artigos já foram publicados tentando desvendar esse quebra-cabeça de citações? Mas isso é apenas uma das facetas do que essa colagem de filmes (de kung fu, de faroeste e de gângsteres) pode sugerir.

Talvez exista algo mais importante a ser discutido que está além da trama simplista da vingança de uma noiva grávida (interpretada pela atriz Uma Thurman), que sofre, no dia do seu casamento, em pleno altar, um sangrento atentado. Por que não estranhamos que uma obra que traz uma carga autoral como essa seja basicamente formada por referências a outros filmes?

A obra de Quentin Tarantino sempre se ancorou em referências a filmes de estilo retrô. E ele levou tão a sério esse modo de fazer cinema que já ganhou até um adjetivo: tarantinesco. Em entrevistas, o diretor faz questão de ressaltar que sua bagagem fílmica paira sobre esse mundo do kung fu classe B e, mais ainda, do western spaghetti (faroeste feito na Itália durante a década de 1960).

Há, ainda, um outro importante ponto de apoio em sua obra, a violência. Tarantino costuma se irritar, mas muitos apontam o cineasta Martin Scorcese (de Taxi driver e Gangues de Nova York) como o seu mentor imagético. E violência é o que não falta em Kill Bill.

Mas Kill Bill não é um filme naturalista, não busca na verossimilhança o suporte da sua trama. Em Kill Bill há sangue jorrando em cascatas; espadas que amputam membros com precisão cirúrgica; aviões que permitem passageiros transportando espadas de samurais; uma última batalha em um grande jardim com neve artificial; a absoluta inexistência de policiais, mesmo quando se trata de uma centena de mortos. Mas toda não-coerência do roteiro é suplantada por essa antropofagia estética, que possibilita, ainda, que um flashback seja apresentado como em uma animação ao estilo japonês. Aí está uma lacuna que permite o exagero e que, ao mesmo tempo, não deixa o filme cair na apologia da violência gratuita. A violência é exagerada, mas é conceitual.

Tarantino talvez não saiba, mas Kill Bill é um filme pós-moderno por excelência. Nele, estão várias características de nosso tempo, um dos critérios óbvios para se julgar o valor de uma obra (de arte?). Vivemos na era das cópias ilegais, da Internet, do MP3, dos programas de compartilhamento de arquivos e, para não esquecer dos primos não digitais, da xerox institucionalizada.

O pós-moderno surge no filme dentro das tantas referências, presentes desde a roupa da heroína (cópia de um quimono utilizado por Bruce Lee) até a estruturação dramática em si, que homenageia gêneros específicos do cinema. Tarantino chega ao cúmulo de referenciar seus próprios filmes, fazendo citação a Cães de aluguel e Pulp fiction. É óbvio, como já dito, que não é em Kill Bill que ele descobre esse modus operandi. No entanto, é nesse filme em que ele chega ao ápice, pois, antes de ser a história de uma vingança, Kill Bill é um filme sobre filmes. É o cinema se recontando, mesmo que seja de forma irônica e cínica.

Para citar apenas alguns exemplos, há ironia quando atribui a autoria de um provérbio popular a uma raça alienígena da série de TV Guerra nas estrelas; e há cinismo quando o filme se nomeia obra autoral, como indicam os créditos iniciais, que ostentam, orgulhosamente, ser o quarto filme de Quentin Tarantino.

Kill Bill ainda assume a futilidade de uma época que está pouco preocupada em aprofundar seus dilemas. A noiva que parte em busca de uma vingança desvairada não demonstra quase nada além desse objetivo. Ela e os outros personagens são praticamente bidimensionais. Apenas Bill (que surge apenas do pescoço para baixo - e é quem parece melhor deter a situação) deixa transparecer alguma fragilidade quando confessa seu masoquismo. A exemplo dos outros filmes de Tarantino, seus personagens parecem um espelho satírico da sociedade americana.

Mas a atualidade tem seu preço. Um filme que fala a língua específica de sua época, sobretudo se for de forma meramente imagética, corre o risco de tornar-se datado e, em apenas alguns anos, perder o vigor. No entanto, se julgarmos por um dos seus irmãos mais novos, Pulp fiction, é provável que isso não ocorra, já que, desde seu lançamento, já se foram dez anos e o filme ainda continua atual. Talvez o que venha a se tornar efêmero seja esse modo de filmar. O tarantinesco já virou escola e fórmula para a produção em série.

Originalmente publicado em www.educacaopublica.rj.gov.br

Elefante

No dia 20 de abril de 1999, dois adolescentes mataram 12 estudantes e uma professora na escola Columbine, localizada no Colorado, Estados Unidos. No último dia 20 de abril, quinto aniversário do massacre, a sociedade norte-americana ainda fazia cara de surpresa ao incidente que também deixou 23 pessoas feridas.

Os promotores da chacina, Eric Harris, de 18 anos, e Dylan Klebold, de 17 anos, mataram-se naquele mesmo dia, antes mesmo de serem pegos pela polícia. A violência desencadeou discussões e análises por todo o território. Até hoje o país esforça-se para entender o motivo de tamanha brutalidade. É no rastro desse sangue que surge o filme Elefante (direção de Gus Van Sant).

O filme, que estreou no Brasil no início de abril, não é o primeiro a focar lentes de cinema sobre a matança, a maior já acontecida em uma escola norte-americana. Tiros em Columbine, de Michael Moore, ganhador do Oscar de melhor documentário em 2003, já tentava desvendar os motivos daquela violência. Mas, enquanto o filme de Moore levanta uma bandeira ativista e antibelicista, Elefante segue o caminho oposto, sem discussões morais. Gus Van Sant não julga os agressores.

Elefante não brada tão alto quanto Tiros em Columbine. Van Sant não sai pela América do Norte apurando dados sobre mortes com armas de fogo ou, muito menos, promovendo manifestações contra lojas de conveniências que vendem munições. Isso tudo é um outro território. O novo filme do diretor de Drugstore cowboy e Gênio indomável é uma ficção e se pretende poético.

A câmara de Gus Van Sant prefere ser asséptica. Os cortes são raros e não há tremores ao estilo MTV. A lente cola de tal forma no cotidiano desses estudantes que se cria com o espectador uma cumplicidade incômoda. Sabemos o que acontecerá ali. No entanto, não sabemos os motivos de tal insanidade.

O filme apresenta apenas pistas. Mostra garotos humilhados pelos colegas; denuncia a fácil aquisição de armas; faz um perfil sucinto da cultura bélica norte-americana com seus videogames, programas televisivos e sites. Mas nada disso é conclusivo e não poderia ser.

Cada um dos personagens apresentados em Elefante possui uma história diferente, uma vida que não se resume àquela escola ou àquelas horas em que o filme faz o seu recorte. O dia do massacre é contado por intermédio desses alunos, quase sem diálogos. É uma visão fragmentada de uma realidade. É como se Van Sant estivesse dizendo que não adianta tentar elucidar a violência, pois a explicação sempre será imperfeita, traçada por um cego.

Daí vem a explicação para o título do filme. É uma referência a um documentário homônimo de 1989 realizado por Alan Clarke, que tratava sobre violência entre adolescentes na Irlanda. Ele dizia que o fato era "tão facilmente ignorável quanto um elefante na sala de estar". Entretanto, o próprio Gus Van Sant cita uma parábola sobre um grupo de cegos que, em contato com um paquiderme, tentam opinar sobre o que existe na frente deles. O que toca o rabo sugere uma corda; outro, que apalpa uma das pernas, imagina uma árvore etc. Cada um deles tem uma visão totalizadora e errônea sobre o animal. Isso, de certa forma, resume o filme e a escolha por visões fragmentadas do incidente. Outro ponto interessante - e, ao que indica, nada superficial - é que o símbolo do Partido Republicano de George Bush também é um elefante.

Essa polifonia de explicações quanto ao título do filme não parece ser despropositada. Essa não-simplificação dos fatos está presente em cada cena dos 80 minutos de duração da fita. Elefante não busca o óbvio: fala de violência sem parecer que o faz. A própria trilha sonora, que é pontuada por uma das mais conhecidas composições de Beethoven, a "Sonata ao luar", faz esse contraponto por ser de extrema delicadeza. A contradição é sua essência, como na citação de um dos jovens assassinos: "Nunca via dia assim, tão belo e feio" - referência ao diálogo que Macbeth, na tragédia homônima de Shakespeare, trava com seu amigo de batalhas Banquo.

Mas o pior é recordar que o caso de Columbine não foi o único. Em um período de apenas 18 meses, ele foi o sexto caso de tiroteio em escolas americanas. O número de mortes causadas dentro desses colégios ainda é mínimo, se comparado com os dados da violência que ocorre fora da sala de aula, como atestam alguns estudos. Entretanto, a pergunta que tenta desvendar o que gerou esses morticínios continua acesa. Até agora, sabemos pouco mais que hipóteses.

Originalmente publicado em http://www.educacaopublica.rj.gov.br/

Abril Despedaçado


Walter Salles, mesmo por trás das câmaras, conseguiu virar uma celebridade do cinema. Diretor do aclamado e premiado "Central do Brasil", agora ele volta às telas com "Abril Despedaçado". O novo filme é o mais maduro de sua carreira ficcional.

Mas a verdade é que "Central..." passa longe de "Abril...". São histórias diferentes, com acabamentos, métodos e simbologias particulares. Ambos, no entanto, recorrem a um personagem mirim como a âncora do enredo.

Em "Abril Despedaçado", a história das duas famílias (Breves e Ferreira), que se matam ao longo de gerações - por dívidas de sangue e terras – é narrada pelo jovem Pacu (Ravi Ramos Lacerda), irmão mais novo de Tonho (Rodrigo Santoro).

A localização é incerta. Mesmo assim, o filme só parece ganhar com a falta de precisão geográfica, torna-se, embora regional, mais universal. Sabe-se apenas que é Nordeste brasileiro, ano de 1910.

Agora é Tonho que carrega a incumbência de derramar mais uma vez o sangue de um Ferreira, por causa do ódio, da tradição e da honra dos Breves. E assim é feito.

O personagem de Santoro monta uma tocaia e segue-se uma das mais competentes seqüências de perseguição rodadas no cinema brasileiro (onde os pontos de vistas de cada um é mostrado concomitantemente, através de fusão. Até o tiro, até o final).

"Abril Despedaçado" leva o mesmo nome de um romance albanês. Ou seja, Walter Salles retirou das montanhas dos Balcãs, de um texto de Ismail Kadaré, os elementos para uma versão nordestina das vendetas, tão comuns na história não oficial do Brasil.

É do livro todo o ritual em torno das mortes sucessivas. É do livro a exigência das tréguas intermitentes, do respeito com a família odiada, com a rigidez do trabalho e, sobretudo, com a tradição. Mas não é do romance – e sim de uma simbologia própria da fita – os elementos que a tornaram uma obra poética. Até porque o livro de Kadaré mais parece um estudo antropológico.

Ismail Kadaré montou sobre um velho código de conduta balcã (o Kanun) uma história trágica. No filme de Salles, novos elementos fazem com que as engrenagens que são tão sheakespereanas, a priori impossíveis de serem quebradas, tornem-se um pouco maleáveis.

O tom trágico não deixa de existir. Mas no longa, a redenção, tema alvo do diretor desde o belíssimo "Terra Estrangeira", surge na figura infantil. Salles, portanto, além fazer uma adaptação do romance, impõe-se de liberdade para recriá-lo à medida brasileira. E não haveria outra forma de ser.

Aliás, é nas engrenagens de uma bolandeira (máquina rústica que mói a cana-de-açúcar) que está uma das mais importantes metáforas do filme. Enquanto o gado serve de tração para a máquina, enquanto a família sob o sol queima mais um dia no trabalho, o tempo passa.

Tonho, que recebeu a trégua de apenas uma lua, sente a cada girar da engrenagem, a cada vôo do irmão no balanço, a cada dia e noite que passa, sua morte sempre mais próxima. Como um personagem do filme o explica: "o relógio marca mais um, mais um, mais um. Mas para você ele diz: menos um, menos um, menos um...".

"Abril..." ainda tem o mérito de dizer muito com poucas palavras. É quase mudo, mas não é superficial. Tem poucos diálogos e muita imagem. A fotografia de Walter Carvalho é tão bonita que o filme chegou a receber acusações. Porque não seria ético ou justo retratar a miséria através da beleza.

Polêmicas e ingenuidades à parte, o longa tem imagens que ficam na memória por muito tempo, como o início do filme, quando Pacu começa a narrar na penumbra azul da madrugada, a tragédia de sua família.

Texto publicado originalmente em cabugi.com e Tribuna do Norte