sábado, julho 30, 2005

Idade da Terra

Era muito caro a Glauber Rocha, ícone maior do Cinema Novo, a quebra dos paradigmas. Glauber era um inconformado e um revolucionário incurável que via na estética do cinema então vigente uma plataforma para a dominação cultural, para o controle dos povos do terceiro mundo e para a perpetuação de uma economia capitalista, burguesa. Talvez com exceção apenas de seu primeiro filme, O Pátio, curta metragem de 1959, Glauber sempre fez política através das imagens em movimento.

Radical em princípios ideológicos/éticos e na forma de captar imagens, Glauber Rocha, filme a filme, vai galgando experimentações e amadurecendo seu intuito frente ao fazer cinema. Embora seja em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) que o cineasta alcança seu maior reconhecimento, é em Idade da Terra (1980), seu derradeiro filme, onde reside seu último grau de aperfeiçoamento. Esse julgamento, é bom deixar claro, leva em consideração o que o próprio Glauber esperava de seu cinema, um fazer anárquico não preso a preceitos narrativos.

E Idade da Terra é uma experimentação não narrativa, assim como ele queria seu cinema revolucionário, com a cara e a poeira do terceiro mundo. Idade da Terra é prosa poética, é um acúmulo de discursos e imagens que juntos tendem a traçar uma radiografia imprecisa dos arroubos socialistas no Brasil pós-anistia. Idade da Terra é uma proposta onírica, neo-surrealista (neo-sul-realista), utilizando palavras do próprio Glauber para conceituar seu cinema, ou seu intuito de cinema.

Em seu último filme, Glauber chega ao ápice de uma proposta que já vinha desenvolvendo desde 1971, quando escreve o manifesto Estética do Sonho. Manifesto que surge em contraposição ao anterior Estética da Fome, de 1965. O primeiro fala da fome como caminho para a revolução, porque a fome gera a violência necessária para a libertação do colonizado, para a libertação do sentimento de colonizado; já o segundo critica essa visão, pois seria o povo “o mito da burguesia”, um retrato pintado pelo dominador, já que a idéia que o povo teria de si próprio seria uma idéia projetada pela burguesia e aceita pelo proletariado. Em Estética do Sonho, Glauber vai afirmar que a verdadeira libertação está na “desrazão”, porque é só na quebra dos paradigmas do próprio pensar que se pode ser independente, porque é apenas no sonho que somos livres. Fome e sonho, política e poesia. Esses serão os nortes em que Glauber irá basear toda a sua obra. Em um primeiro momento achando que a política é o discurso; em um segundo momento achando que a poesia é o que deve sê-lo. No entanto, os dois sempre imbuídos e difusos, nunca totalmente separados.

A última obra de Glauber Rocha é a radicalização do que ele propunha no manifesto de 1971, a ponto de propor que os rolos que compõe o filme a ser projetado não tivessem uma ordem específica. Ficaria a cargo do acaso e do projecionista essa escolha, embora esse querer não tenha sido aceito pela Embrafilme. Talvez por isso, Idade da Terra não tenha créditos, nem iniciais nem finais. Não há sequer o nome do filme impresso sobre a película.

Inicia-se com um plano extremamente longo, em que vê-se um nascer do sol em Brasília. O filme espera todo esse instante do alvorecer, obrigando o espectador a se dar conta de cada detalhe de algo que em seu cotidiano é tão fugaz. É a primeira dica do filme que virá, que já no seu primeiro plano nos diz que sua “narrativa” não é algo usual; que fará com que o público veja um outro cinema, diferente do vigente, diferente da linguagem que é até hoje largamente aceita e comercializada.

A partir daí Idade da Terra irá trabalhar sobre quatro focos, cada um deles tentando sintetizar e desconstruir personagens emblemáticos ao Brasil da época: o índio (Jece Valadão), o negro (Antônio Pitanga), o militar (Tarcísio Meira) e o guerrilheiro (Geraldo del Rey). Além deles, há as mulheres sempre presentes, que ouvem seus discursos ou que clamam pela morte de outro importante personagem do filme, o imperialista Brahms (Maurício do Valle).

A impressão é que Glauber filma tudo à esmo, sem ensaio. A câmera tem a imprecisão comum às imagens de documentário, com seus zooms trêmulos e seu foco mal acabado. Constantemente ouvimos a voz de Glauber dando marcações para os atores ou pedindo para falarem mais alto, sempre pedindo: “mais alto!”. No onírico de Idade da Terra os personagens gritam seus desejos e seus discursos. Fazendo um paralelo, é interessante notar que em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a maior parte do filme é sussurrada. Glauber também faz trechos discursados em off, seja para falar do Brasil pobre, do terceiro mundo e suas contradições, seja para dar impressões sobre o filme que gostaria de ter feito quando soube da morte do cineasta/poeta Pasolini. Glauber diz que queria filmar sobre o Cristo, mas um cristo venerado no momento da ressurreição e não o do calvário, tão apregoado pelas igrejas. Porque Glauber queria tratar da revolução como libertação, como a boa nova para o povo com sua fome crônica.

O messianismo, sempre presente na obra do cineasta, também aparece em Idade da Terra. Todos os quatro personagens, o negro, o militar, o índio e o guerrilheiro, estão no filme imbuídos de um discurso profético, às vezes redentor, às vezes apocalíptico. Há um momento em que o personagem de Antônio Pitanga, o mais místico deles, surge curando um cego, fazendo a multiplicação da comida e, numa ironia glauberiana, sanando a sede do povo com a multiplicação da pepsi-cola. É o mesmo personagem que irá aparecer completamente nu pedindo o amor de uma mulher, numa simbologia que o remete à reintegração da natureza.

A parte apocalíptica fica para o personagem de Tarcísio Meira que, às margens da Baía de Guanabara, fala de uma bomba atômica que irá destruir a todos; fala em outras palavras de algo que está para acontecer e se ressente com sua impotência. E xinga e xinga e xinga: “isso aqui é a cloaca do universo”, e a câmera corre a focar o lixo que se acumula à beira das pedras.

Idade da Terra seria atonal, se fosse uma sinfonia. São muitos os discursos que se interpõem além do o que trata da libertação e da revolução. Como quando a montagem assume no meio de seu discurso fílmico um acidente de trabalho e mostra o ator Maurício do Valle se lamentando de dor por causa de uma topada; como quando assume os olhares do povo que anda na rua e não está ciente do que está sendo filmado e volta seus olhos para a câmera (olhares que denunciam o falso da ficção e, por isso mesmo, falam sobre o real do documental); como quando se assumem repetições do que é dito (há muitas falas repetidas à exaustão); como quando Jece Valadão invade uma procissão para gritar seu texto no meio dos religiosos; como quando vê-se o personagem guerrilheiro sendo untado de sangue falso para a cena seguinte.

Assistir Idade da Terra e tentar costurar com precisão a relação de todos esses fragmentos de falas, offs, discursos e poesias é uma tarefa árdua. Melhor é apreciar com os olhos abertos para as imagens, mas como se fechados ao dormir. Tentar usar a “desrazão”, libertar-se das regras petrificados pelo cinema narrativo. Idade da Terra é um dos filmes mais viscerais do cinema brasileiro e deve ser visto com a mesma visceralidade. É preciso comer as imagens.

terça-feira, julho 26, 2005

A Vida Marinha de Steve Zissou


Wes Anderson é um diretor inventivo. Ele não está criando a roda, mas a exemplo de outros como Jim Jarmush (Sobre Café e Cigarros), Paul Thomas Anderson (Magnólia) e Charlie Kaufman (roteirista de Quero Ser John Malkovich), ele vem traçando um caminho distante do que o público americano está acostumado a assistir, mesmo dentro do dito cinema independente.

Wes Anderson não inventou a roda nesse A Vida Marinha de Steve Zissou ou no seu anterior Os Excêntricos Tenenbaums, mas criou um jeito particular de contar histórias. Assim como é possível reconhecer de olhos fechados as estratégias narrativas do brasileiro Jorge Furtado (O Homem que Copiava), é possível em poucos minutos de projeção reconhecer o que há de Wes Anderson num filme. Poderia se dizer o mesmo dos outros citados aí em cima, cada qual com seu estilo próprio, cada qual parecendo carregar um frescor que faz falta no cinemão de pipoca e shopping center.

Esse jeito particular que Wes Anderson filma nos dá a entender que captar imagens em movimento é uma brincadeira de criança; que toda sua mis-en-scéne é coerente porque ela é exatamente isso e nada mais que uma brincadeira de contar histórias. É como entrar no teatro e aceitar o lúdico, é como assistir Fellini e saber que ele está falando de sonhos e picadeiros. É esse lúdico que no A Vida Marinha permite um Seu Jorge cantando versões em português de David Bowie, acompanhado apenas pelo seu violão.

A Vida Marinha de Steve Zissou é a história de um homem que quer fechar sua carreira de documentarista náutico com um grande filme e ser perdoado pela crítica e público que o renegaram. Steve Zissou manteve uma certa fama nos primeiros anos de carreira, mas aos poucos foi caindo no esquecimento e seus empreendimentos passaram a dar prejuízos. Steve Zissou é um Jacque Cousteau sem espírito científico. Toda sua equipe é, como o próprio protagonista explica, uma farsa. É uma reunião de amigos que pouco sabiam sobre biologia marinha ou oceanografia. O cérebro atrás da equipe Zissou é a mulher de Steve, que além de lembrar-lhe os nomes das espécies em latim, sabe planejar estratégias e os investimentos.

Steve Zissou é interpretado por Bill Murray, que empresta ao personagem aquela feição característica de impassível tédio. Um tédio de blasé, como diria Adriana Calcanhoto em Água Perrier, porque Zissou é um egocêntrico que não se dá conta do seu egoísmo. É um personagem profundamente entristecido com a derrocada de sua carreira e que tem como meta apenas o seu filme.

A Vida Marinha começa com cenas da primeira parte do filme que Steve Zissou está rodando. O formato é de um documentário burocrático e mal produzido, mas que tem um apelo dramático incontestável. Numa das expedições da equipe, uma espécie rara de tubarão devora um membro da equipe. A primeira parte acaba aí. A projeção é feita para convidados, numa tentativa de levantar fundos para o resto do projeto. E o projeto de Zissou é encontrar o tubarão e matá-lo, dinamitá-lo, como sugere, frente ao tamanho colossal da criatura.

É estranho que nos créditos finais Wes Anderson dedique o filme a Jacque Cousteau, mas esqueça de Herman Melville e seu romance Moby Dick, que narra a odisséia de um homem que cruza os oceanos em busca da baleia branca e tudo perde na tentativa de matá-la. Se Wes Anderson esquece Melville, de Cousteau ele não poupa referências, seja através do gorro vermelho característico ou pelo modo de apresentar algumas imagens submarinas.

Steve Zissou consegue a verba com a promessa de não matar o tubarão. Exigência de alguma sociedade protetora de animais. Antes de embarcar descobre um filho de um antigo relacionamento e o integra à equipe. É esse filho que irá dar a Steve elementos para seu encontro consigo, seu autoconhecimento. É outra estratégia narrativa de Melville e de tantos outros contadores de histórias, da literatura e do cinema: a viagem como uma ferramenta para a busca de si. A medida que a viagem prossegue, mais e mais o personagem de Bill Murray vai se dando conta de quem é, de seus erros e de seu egoísmo.

A Vida Marinha trata dessas buscas que fazemos, dos sonhos particulares que ninguém tem acesso. É por isso que na primeira parte do documentário não vemos o tubarão. Chegamos mesmo a duvidar de sua existência. Alguém pergunta ao diretor-comandante se aquilo não é uma jogada de marketing. E chegamos a crer que sim. Talvez por isso, todo o mundo marinho seja nos apresentado de forma lúdica. Porque se a paixão do explorador é o oceano, ele deve nos aparecer como uma brincadeira.

Essa relação do sonho com a infância é a todo momento pontuada pelo filme. Os que crêem cegamente em Seteve são crianças; os peixes que ele tanto gosta têm cores que só o onírico poderia criar; seu barco nos é apresentado como numa maquete ou uma casa de bonecas. A aproximação com seu filho, que ele nega-se a aceitar como tal, é o que faz perceber isso. Embora o filho encontrado seja um adulto, há nele uma carência infantil pelo pai. No fim da busca, quando Steve encontra ao tubarão e a si mesmo, ele entende seu medo da solidão e questiona-se se a criatura lembraria dele. Provavelmente não. Ao contrário da Moby Dick, o tubarão de Wes Anderson seguiu sua rota de migração sem dar maiores atenções às pequenas vaidades humanas. Steve Zissou entende o vazio de sua busca, de sua vida.

Motion Pictures


Intimidade: por Andy Warhol

Doze telas em movimento. Retratos filmados de personalidades e de anônimos que Andy Warhol pretendia famosos. Tratam-se de alguns dos conhecidos experimentos que o homem da Pop Art fez entre os anos de 1963 e 1968, quando conduziu a Silver Factory, ateliê de onde surgiram rótulos de sopas, retratos em polaroids, retratos em serigrafia, banda de rock e até um Basquiat.

Andy Warhol, fascinado pela imagem e pelo mito, se dedicou à arte em série. Desconstruía os símbolos para criar novos, inventou a eternização do kitsch. Motion Pictures, exposição que passou pelo Rio de Janeiro e seguiu para São Paulo, é um reflexo dessas tentativas de construção e desconstrução imagéticas.

Com suas pinturas filmadas, Andy Warhol também parece perguntar sobre o futuro do cinema; especular caminhos não explorados até então. Mas filmes de pessoas que nada fazem ou pouco fazem não são propriamente filmes, desde que excetuemos o suporte em que foi captado, a película. Andy Warhol filmava não filmes e fazia, assim, não quadros, já que os quadros propriamente não se mexem, desde que excetuemos as experiências de Soto e suas telas recheadas daquelas ilusões que nos deixam tontos. Talvez esteja aí a importância dessas obras, essa discussão iniciada pelo movimento Dadaísta, sobre o que é e o que não é arte, quadro, pintura, literatura, música... Não há respostas satisfatórias desde que Duchamp inventou de colocar aquele urinol em um museu.

Andy Warhol filmou muita coisa. Desde retratos de 5 minutos, cada, ao Empire States por cerca de 8 horas ininterruptas; um homem comendo cogumelos por cerca de uma hora e outro dormindo suas 7 horas. Filmou também um ator recebendo uma felação, mas teve o pudor de deixar a câmera em close, no seu rosto. Filmou beijos de hetero e homossexuais e uma partida de xadrez, embora esse filme do jogo não faça parte da mostra que chegou ao Brasil através do Museu de Arte Moderna de Nova Yorque, o MoMA.

Motion Pictures, no entanto, é formado apenas por trechos restaurados desses filmes. Vieram em formato de vídeo e são projetados nas paredes dos museus com molduras pretas de grandes dimensões.

É interessante a intimidade que Andy Warhol alcança com seus retratos. Uma leve câmera lenta ajuda na melancolia e os retratados devem ter tido uma boa direção para deixar seus olhares distantes, seus movimentos enfadados.

Um homem mastiga cogumelos e se balança numa cadeira de balançar. A luz chega de fora, por uma janela que não vemos, e é para lá que ele olha, para onde não podemos enxergar. Qualquer interpretação é possível, qualquer não interpretação, também. E nesse balançar e comer, podemos sentir o tédio de uma vida inteira ou uma tristeza sem nome.

Nos retratos de menor duração, os ditos Screen Tests, há a mesma estratégia “narrativa”. Pessoas olham o vazio ou a câmera. Pouco fazem. Uma tenta comer cabelo, mas os demais, nada, ou sorriem até envergonhados frente à câmera 16mm. Salvador Dali, o mais célebre dos retratados dessa mostra, aparece de cabeça para baixo. Uma alusão óbvia e até ingênua da sua obra surrealista.

A tela intitulada Blow job mostra um homem também sentado, reencostado a uma parede. Alguém o faz um boquete, daí o título original. Só vemos o seu rosto que, entre espasmos de prazer, acende um cigarro ou olha para a câmera, para nós espectadores de uma cena real. Olha com lasciva, embora não cheguemos a crer no seu prazer, talvez por ser cru demais, talvez por ser um prazer mudo, talvez por estarmos surdos frente à tela.

São telas sem som, quadros que se mexem em branco e preto, mas não emitem barulho. Talvez o Velvet Underground, junto com Nico, fosse a trilha sonora que Andy Warhol procurava para seus quadros. Talvez por isso tenha construído a carreira da banda. Talvez...

Casa de Areia

Cem anos de areia

O plano é longo, evasivo. Um plano geral que espera desbravadores de um deserto atravessá-lo de ponta a ponta. Um pequeno grupo de pessoas, carregando mantimentos e animais, lutando contra o cansaço da caminhada, contra o sol e a areia que a tudo dificulta. A saga começa em 1910, nos Lençóis Maranhenses, e será lá que terminará, décadas depois, num círculo sem saída. Casa de Areia, quarto filme de Andrucha Waddington, é uma alegoria da solidão e da ilusão humana, mesmo que para tal vá tão longe para contar sua história.

No momento seguinte estão Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, mãe e filha (em vida e em enredo), exaustas, mas ainda caminhando contra a areia e o sol. Daquela primeira monotonia, de espaços largos e vasto, partiu-se para um close, que agora começa a detalhar pela contradição os personagens de tal desventura. Lembra a chegada dos Buendia na terra prometida de Macondo, em Cem Anos de Solidão, do nobel Gabriel Garcia Marquez. A referência é tão clara que Fernanda Montenegro e Fernanda Torres se alternarão nos papéis durante o restante do filme. A medida que a filha envelhece, a personagem é assumida pela Fernanda Montenegro e a neta pela Fernanda Torres. As trocas de papéis acompanharão a fita durante as gerações em que a lente focará a história. Em Cem Anos de Solidão, recurso semelhante é utilizado quando Gabo mistura os nomes dos filhos e dos netos e, com isso, alcança uma sensação de repetição no círculo de nascimentos e mortes da família.

Neste primeiro momento do filme, Fernanda Torres está a cargo do papel da filha prometida e casada com um homem mais velho. O marido é interpretado surpreendentemente por Ruy Guerra, diretor de filmes como Os Fuzis e Estorvo. É um homem de algumas posses, que viu nos Lençóis a cobiça de uma vida melhor, o sonho feudal de terras, a descendência patriarcal. Ainda estamos nos primeiros minutos de Casa de Areia e tudo isso já foi entredito, exposto entre os fotogramas. Todas as referências sociais do personagem são apenas intuídas, assim como grande parte das informações contidas no longa-metragem. O filme ainda tem participação de Seu Jorge - o músico que deu o ponta-pé no grupo Farofa Carioca e interpretou Mané Galinha em Cidade de Deus - e Luiz Melodia, aquele da famosa Magrelinha.

Sobre uma duna dos Lençóis Maranhenses, uma casa é construída pelos empregados para abrigar a família no meio do nada, mesmo sob a relutância da esposa, que preferiria ir embora. Mesmo ao saber da gravidez da mulher, o patriarca não cede. Quer que o filho nasça ali, profetiza-o homem e espera o dia em que o primogênito terá forças para ajudá-lo na lida do dia-a-dia. Mas o marido morre e o filho nasce mulher. Com a morte, os empregados fogem, roubam mãe e filha e deixam-nas para trás.

A distância, a gravidez, depois a filha muito nova, a mãe velha e o quase total isolamento impedem que elas partam. Ao longo das décadas seguintes haverá sempre uma vontade visceral de partir do nada para algum lugar. No entanto, sempre permanecerá essa impossibilidade. Mas a vontade em alguns casos se apazigua, acomoda-se, e a viúva que tanto lutou para fugir se vê velha e desistente. E no retorno do círculo, é a neta, a filha do explorador Vasco, que toma para si a perspectiva de viver longe dali.

Em Casa de Areia, os meses e os anos correm sem serem vistos ou anunciados. Não há festas para celebrar qualquer data, qualquer aniversário ou novo ano. Há apenas uma aparente mas bem solucionada confusão na troca de papéis que demarcam o avanço dos anos, marcada por elipses precisas, como a que mostra num salto de mais de duas décadas, aviões partindo para a Segunda Grande Guerra.

O som, que pouco ecoa além do vento que sopra a areia, também é um personagem importante na história. Laborioso foi o feito de construir o som em Casa de Areia, mostrar as nuances de cada uivo e o silêncio como parte integrante dessas solidões. Logo no início do filme, vê-se uma fotografia em que a primeira personagem de Fernanda Torres está sentada ao lado de um piano. O cuidado com que trata a foto nos diz muito sobre a falta da música em sua vida, sobre os acordes que não mais ouvirá. O silêncio cria mais um dado para a compreensão da personagem, fazendo um arco dramático para o fim do filme, que nego-me a escrever, não pela convenção que dita não entregar os desfechos, mas, sim, por tratar-se de um momento de rara poesia.

A alegoria de Casa de Areia é procurar no areal dos Lençóis uma metáfora para as buscas do homem. Uma busca existencial, que tanto está refletida/projetada em avanços científicos como na arte; tanto no chope da esquina quanto nas salas das universidades. Casa de Areia trata da ilusão e da finitude do ser; trata da solidão urbana, mesmo sem pisar numa avenida de concreto. E para não citar mais uma vez o eterno retorno de Nietzsche, melhor lembrar de Antes da Chuva, de Milcho Manchevski, que diz, “o tempo não espera, porque o círculo não é redondo”.

A Montanha dos Sete Abutres

Com as asas dos urubus

A Montanha dos Sete Abutres é um filme de 1951 que ainda mantém uma atualidade gritante. Ok, é um filme feito há mais de cinco décadas, rodado em preto e branco e protagonizado por Kirk Douglas – na época em que ele ainda fazia papel de mocinho. Ou seja, essa fita de Billy Wilder carrega um estilo imagético já superado pela indústria cinematográfica. Mas o seu discurso não envelheceu em nada, sobretudo quando lembramos que vivemos em tempos de George W. Bush. O filme trata de um assunto exaustivamente discutido nas universidades de comunicação, a credibilidade e imparcialidade jornalística.

Em A Montanha dos Sete Abutres, Kirk Douglas vive o jornalista Charles Tatum, que saiu desempregado dos grandes centros por causa de sua conduta pouco ética. E ele só consegue emprego em um pequeno jornal de uma província do Novo México. Tatum está com o ego ferido. Acostumado com o glamour de Nova Yorque, ele sente-se rebaixado no novo trabalho. Mesmo assim, se mantém no jornal, cobrindo pequenas notícias. Tudo o que ele espera é o dia em que acontecerá um grande acontecimento por aquelas banda. Dessa forma, ele planeja catapultar seu nome de volta à elite da imprensa americana.

E o dia chega quando ele descobre um homem soterrado em uma antiga mina. Tatum vai utilizar aquele incidente da forma que mais lhe convém. Ele manipula a família do homem e faz uma matéria sobre o caso. No dia seguinte, o homem ainda está soterrado. Os curiosos começam a chegar no local e, como ele esperava, a imprensa de Nova Yorque. O jornalista fará de tudo que estiver ao seu alcance para se manter na linha de frente daquela cobertura, inclusive mantendo a vítima do incidente soterrada por mais alguns dias. Como um abutre que circunda em espera do animal moribundo, ele planeja a melhor forma de degustar a refeição futura.

A Montanha... denuncia o que há de mais infame no jornalismo: a manipulação da informação e, o que é pior, a manipulação do fato em si. Tatum finge ajudar a família da vítima e convence o xerife local a ajudá-lo em sua farsa. É uma alegoria que discute até onde vai o poder da imprensa, até que ponto devemos fazer vista grossa para o dito “jornalismo marrom”.

Entretanto, o que há de mais cruel no longa metragem de Billy Wilder é a noção de que praticamente todos estão colaborando de alguma forma para o circo que é literalmente armado em volta daquela tragédia (chegam a montar um parque de diversões, obviamente atraídos pela multidão de curiosos que acampa próximo à mina). Apenas três pessoas parecem não querer aproveitar (de forma lúdica ou financeira) aquela situação: o dono do pequeno jornal, o pai e a mãe do homem soterrado. A própria esposa da vítima, que no início da história ensaia uma fuga com os poucos dólares da caixa registradora do pequeno comércio que são donos, retrocede de sua empreitada ao perceber que poderia ganhar muito dinheiro com o acontecimento. E ganha. Além dos muitos hambúrgueres que vende aos famintos curiosos, ela chega a cobrar a entrada no local.

Dessa forma, A Montanha dos Sete Abutres levanta um questionamento que ultrapassa a mera crítica à imprensa. Billy Wilder afirma em letras garrafais que o problema está é no ser humano. Tatum é apenas o estopim para que essas pessoas se prontifiquem a transparecer alguns dos piores traços de caráter imagináveis. Ele demonstra isso claramente com a corrupção da polícia, com a ganância da esposa ou com a covardia do empreiteiro (que cede à chantagem do xerife que o obriga a fazer o resgate da forma mais difícil e demorada).

De qualquer modo, o filme deixa no fim uma luz de redenção, embora tardia. Ao término da fita, o homem que está soterrado não resiste e morre de pneumonia. Tatum cai em si. O jornalista que fora capaz de enganar tantas pessoas; manter um homem preso em uma mina durante sete dias; capitalizar perversamente o seu “furo” jornalístico, não resiste a culpa de seus atos. É uma conclusão cristã, pois o pecador se pune em busca de algum perdão. É Tatum quem anuncia à multidão a morte do homem. Na mesma penitência, ele desiste de escrever a matéria que o devolveria à elite jornalística. E, por fim, na última seqüência ele retorna cambaleante à redação do pequeno jornal que abandonara. E como São Francisco de Assis que se expropria de toda a riqueza dos pais, Tatum oferece seus serviços de graça ao antigo chefe. A queda do personagem, no último plano do filme, é a metáfora do homem derrotado e humilhado.

Asas do Desejo

Asas da ausência


Berlim ainda estava dividida quando, em 1987, Wim Wenders produziu a sua maior obra, Asas do desejo. O muro, que ruiria dois anos depois, se impunha não apenas como uma instransponível fronteira. A cidade partida (título que hoje o Rio de Janeiro laboriosamente toma emprestado) dividia também famílias, conceitos, ideologias, pessoas.

O Céu sobre Berlim, como diz o título original, é a abrangência desse tema. Wim Wenders não queria falar apenas de um amor impossível, como uma leitura superficial pode levar a crer. Também não tinha a intenção de, nessa alegoria, transformar o filme em um panfleto político. Asas do desejo vai mais além, fala do muro que cada um construiu em torno de si, da inexistência de utopias, da fragilidade de uma época, da ignorância ao outro, do egoísmo, da solidão.

Em Asas do desejo, a câmara acompanha a melancolia de dois anjos. Observa com eles o vácuo em que a criação se tornou e lamenta a cegueira humana. O homem de 1987 não mais vê os anjos, não mais os ouve. Prometeu roubou o fogo; Enkidu possuiu a prostituta; Adão comeu do fruto. Recita o anjo: Quando a criança era criança, ela caminhava com os braços balançando. Ela queria que o riacho fosse um rio, o rio uma torrente e essa poça d´água, o mar. A criança éramos nós. Adultos, fomos destituídos do verdadeiro.

Wim Wenders propõe uma expansão do que o senso comum enxerga no divino. Longe de ser religioso, Asas do desejo busca metáforas para nossa incompletude no arcabouço imagético de uma das mais antigas crenças do homem. Se somos ou não vigiados e protegidos por anjos, o filme não discute. Ele assume o discurso para aprofundar nossas ausências.

E o que não é o desejo, senão a falta? Trabalhando sempre sobre um plano contraditório, Wim Wenders mostra anjos que sentem essa ausência. Como seres etéreos, eles não enxergam as cores (daí a escolha pelo preto e branco) ou as formas; não sentem o áspero ou o liso; o calor ou o frio. Assim, eles também não têm forma. Enxergá-los, capacidade reservada apenas às crianças ainda inocentes, não é função da visão. As lentes de Asas do desejo nos mostram esse mundo privado.

Propõe-se uma concessão e uma troca. É como se os anjos dissessem que deixam-nos ver o mundo com os olhos de criança. Em troca, damos a eles nossos desejos, nossas dores e alegrias. Os anjos de Wim Wenders anseiam pelo efêmero. Há um diálogo antológico em que Damiel e Cassiel externam essa vontade. Nele, perguntam-se o quão prazeroso deve ser beber uma taça de vinho ou retirar os sapatos após um dia de trabalho; o quão humano deve ser dizer talvez ao invés de sempre saber a verdade. Por isso, freqüentam as bibliotecas; por isso, procuram estar ao lado dos desesperados e dos amantes.

A troca é cumprida com a queda do anjo, quando o filme ganha cor e Damiel, perplexo por sentir dor e sangrar, cambaleia por uma Berlim suja e pichada. Chega a ser cômico quando ele pergunta se aquilo que escorre (o sangue) é vermelho. É o seu primeiro contato com o humano e, não à toa, com a presença da morte.

Damiel não cai por renegar Deus. Sua forma humana se dá por um amor profundo à criação, por causa do fascínio que mantém pela única coisa que ele não conhece, que não lhe é palpável. A paixão que sente pela trapezista é o que o arranca do âmbito divino e etéreo. É o eterno clichê do palhaço que ama a trapezista, o mesmo de Romeu e Julieta. Mas no amor proibido de Wim Wenders, a trapezista utiliza asas cenográficas, e essa é a senha para a completude ou para a humana ilusão que um anjo sentirá ao vê-la balançar no circo: a metáfora da contradição, em que todo o discurso fílmico de Asas do desejo é baseado.

Ao cair, o anjo alcança a ausência que tanto almejou. E a falta se inicia pela fome. Diz Wim Wenders que, quando um anjo deixa seu mundo, traz consigo uma armadura. E de que serve para um caído, um objeto de luta celestial? Ao vendê-la, Damiel enfim está imerso no mundo humano, pois ele negociou o último resquício de seu passado atemporal, imaterial. E já se vai longe o tempo em que se dizia: Quando a criança era criança, ela não tinha opinião sobre nada. Não tinha nenhum hábito. Ela se sentava de pernas cruzadas, saía correndo de repente. Tinha um redemoinho no cabelo e não fazia caras quando ia tirar fotografia.

Orginialmente publicado em www.educacaopublica.rj.gov.br

Kill Bill

Irônico, cínico, violento, pós-moderno

Quanto já se falou sobre os mais de 80 filmes em que Quentin Tarantino se "inspirou" para escrever apenas a primeira parte do seu Kill Bill? Quantos artigos já foram publicados tentando desvendar esse quebra-cabeça de citações? Mas isso é apenas uma das facetas do que essa colagem de filmes (de kung fu, de faroeste e de gângsteres) pode sugerir.

Talvez exista algo mais importante a ser discutido que está além da trama simplista da vingança de uma noiva grávida (interpretada pela atriz Uma Thurman), que sofre, no dia do seu casamento, em pleno altar, um sangrento atentado. Por que não estranhamos que uma obra que traz uma carga autoral como essa seja basicamente formada por referências a outros filmes?

A obra de Quentin Tarantino sempre se ancorou em referências a filmes de estilo retrô. E ele levou tão a sério esse modo de fazer cinema que já ganhou até um adjetivo: tarantinesco. Em entrevistas, o diretor faz questão de ressaltar que sua bagagem fílmica paira sobre esse mundo do kung fu classe B e, mais ainda, do western spaghetti (faroeste feito na Itália durante a década de 1960).

Há, ainda, um outro importante ponto de apoio em sua obra, a violência. Tarantino costuma se irritar, mas muitos apontam o cineasta Martin Scorcese (de Taxi driver e Gangues de Nova York) como o seu mentor imagético. E violência é o que não falta em Kill Bill.

Mas Kill Bill não é um filme naturalista, não busca na verossimilhança o suporte da sua trama. Em Kill Bill há sangue jorrando em cascatas; espadas que amputam membros com precisão cirúrgica; aviões que permitem passageiros transportando espadas de samurais; uma última batalha em um grande jardim com neve artificial; a absoluta inexistência de policiais, mesmo quando se trata de uma centena de mortos. Mas toda não-coerência do roteiro é suplantada por essa antropofagia estética, que possibilita, ainda, que um flashback seja apresentado como em uma animação ao estilo japonês. Aí está uma lacuna que permite o exagero e que, ao mesmo tempo, não deixa o filme cair na apologia da violência gratuita. A violência é exagerada, mas é conceitual.

Tarantino talvez não saiba, mas Kill Bill é um filme pós-moderno por excelência. Nele, estão várias características de nosso tempo, um dos critérios óbvios para se julgar o valor de uma obra (de arte?). Vivemos na era das cópias ilegais, da Internet, do MP3, dos programas de compartilhamento de arquivos e, para não esquecer dos primos não digitais, da xerox institucionalizada.

O pós-moderno surge no filme dentro das tantas referências, presentes desde a roupa da heroína (cópia de um quimono utilizado por Bruce Lee) até a estruturação dramática em si, que homenageia gêneros específicos do cinema. Tarantino chega ao cúmulo de referenciar seus próprios filmes, fazendo citação a Cães de aluguel e Pulp fiction. É óbvio, como já dito, que não é em Kill Bill que ele descobre esse modus operandi. No entanto, é nesse filme em que ele chega ao ápice, pois, antes de ser a história de uma vingança, Kill Bill é um filme sobre filmes. É o cinema se recontando, mesmo que seja de forma irônica e cínica.

Para citar apenas alguns exemplos, há ironia quando atribui a autoria de um provérbio popular a uma raça alienígena da série de TV Guerra nas estrelas; e há cinismo quando o filme se nomeia obra autoral, como indicam os créditos iniciais, que ostentam, orgulhosamente, ser o quarto filme de Quentin Tarantino.

Kill Bill ainda assume a futilidade de uma época que está pouco preocupada em aprofundar seus dilemas. A noiva que parte em busca de uma vingança desvairada não demonstra quase nada além desse objetivo. Ela e os outros personagens são praticamente bidimensionais. Apenas Bill (que surge apenas do pescoço para baixo - e é quem parece melhor deter a situação) deixa transparecer alguma fragilidade quando confessa seu masoquismo. A exemplo dos outros filmes de Tarantino, seus personagens parecem um espelho satírico da sociedade americana.

Mas a atualidade tem seu preço. Um filme que fala a língua específica de sua época, sobretudo se for de forma meramente imagética, corre o risco de tornar-se datado e, em apenas alguns anos, perder o vigor. No entanto, se julgarmos por um dos seus irmãos mais novos, Pulp fiction, é provável que isso não ocorra, já que, desde seu lançamento, já se foram dez anos e o filme ainda continua atual. Talvez o que venha a se tornar efêmero seja esse modo de filmar. O tarantinesco já virou escola e fórmula para a produção em série.

Originalmente publicado em www.educacaopublica.rj.gov.br

Elefante

No dia 20 de abril de 1999, dois adolescentes mataram 12 estudantes e uma professora na escola Columbine, localizada no Colorado, Estados Unidos. No último dia 20 de abril, quinto aniversário do massacre, a sociedade norte-americana ainda fazia cara de surpresa ao incidente que também deixou 23 pessoas feridas.

Os promotores da chacina, Eric Harris, de 18 anos, e Dylan Klebold, de 17 anos, mataram-se naquele mesmo dia, antes mesmo de serem pegos pela polícia. A violência desencadeou discussões e análises por todo o território. Até hoje o país esforça-se para entender o motivo de tamanha brutalidade. É no rastro desse sangue que surge o filme Elefante (direção de Gus Van Sant).

O filme, que estreou no Brasil no início de abril, não é o primeiro a focar lentes de cinema sobre a matança, a maior já acontecida em uma escola norte-americana. Tiros em Columbine, de Michael Moore, ganhador do Oscar de melhor documentário em 2003, já tentava desvendar os motivos daquela violência. Mas, enquanto o filme de Moore levanta uma bandeira ativista e antibelicista, Elefante segue o caminho oposto, sem discussões morais. Gus Van Sant não julga os agressores.

Elefante não brada tão alto quanto Tiros em Columbine. Van Sant não sai pela América do Norte apurando dados sobre mortes com armas de fogo ou, muito menos, promovendo manifestações contra lojas de conveniências que vendem munições. Isso tudo é um outro território. O novo filme do diretor de Drugstore cowboy e Gênio indomável é uma ficção e se pretende poético.

A câmara de Gus Van Sant prefere ser asséptica. Os cortes são raros e não há tremores ao estilo MTV. A lente cola de tal forma no cotidiano desses estudantes que se cria com o espectador uma cumplicidade incômoda. Sabemos o que acontecerá ali. No entanto, não sabemos os motivos de tal insanidade.

O filme apresenta apenas pistas. Mostra garotos humilhados pelos colegas; denuncia a fácil aquisição de armas; faz um perfil sucinto da cultura bélica norte-americana com seus videogames, programas televisivos e sites. Mas nada disso é conclusivo e não poderia ser.

Cada um dos personagens apresentados em Elefante possui uma história diferente, uma vida que não se resume àquela escola ou àquelas horas em que o filme faz o seu recorte. O dia do massacre é contado por intermédio desses alunos, quase sem diálogos. É uma visão fragmentada de uma realidade. É como se Van Sant estivesse dizendo que não adianta tentar elucidar a violência, pois a explicação sempre será imperfeita, traçada por um cego.

Daí vem a explicação para o título do filme. É uma referência a um documentário homônimo de 1989 realizado por Alan Clarke, que tratava sobre violência entre adolescentes na Irlanda. Ele dizia que o fato era "tão facilmente ignorável quanto um elefante na sala de estar". Entretanto, o próprio Gus Van Sant cita uma parábola sobre um grupo de cegos que, em contato com um paquiderme, tentam opinar sobre o que existe na frente deles. O que toca o rabo sugere uma corda; outro, que apalpa uma das pernas, imagina uma árvore etc. Cada um deles tem uma visão totalizadora e errônea sobre o animal. Isso, de certa forma, resume o filme e a escolha por visões fragmentadas do incidente. Outro ponto interessante - e, ao que indica, nada superficial - é que o símbolo do Partido Republicano de George Bush também é um elefante.

Essa polifonia de explicações quanto ao título do filme não parece ser despropositada. Essa não-simplificação dos fatos está presente em cada cena dos 80 minutos de duração da fita. Elefante não busca o óbvio: fala de violência sem parecer que o faz. A própria trilha sonora, que é pontuada por uma das mais conhecidas composições de Beethoven, a "Sonata ao luar", faz esse contraponto por ser de extrema delicadeza. A contradição é sua essência, como na citação de um dos jovens assassinos: "Nunca via dia assim, tão belo e feio" - referência ao diálogo que Macbeth, na tragédia homônima de Shakespeare, trava com seu amigo de batalhas Banquo.

Mas o pior é recordar que o caso de Columbine não foi o único. Em um período de apenas 18 meses, ele foi o sexto caso de tiroteio em escolas americanas. O número de mortes causadas dentro desses colégios ainda é mínimo, se comparado com os dados da violência que ocorre fora da sala de aula, como atestam alguns estudos. Entretanto, a pergunta que tenta desvendar o que gerou esses morticínios continua acesa. Até agora, sabemos pouco mais que hipóteses.

Originalmente publicado em http://www.educacaopublica.rj.gov.br/

Abril Despedaçado


Walter Salles, mesmo por trás das câmaras, conseguiu virar uma celebridade do cinema. Diretor do aclamado e premiado "Central do Brasil", agora ele volta às telas com "Abril Despedaçado". O novo filme é o mais maduro de sua carreira ficcional.

Mas a verdade é que "Central..." passa longe de "Abril...". São histórias diferentes, com acabamentos, métodos e simbologias particulares. Ambos, no entanto, recorrem a um personagem mirim como a âncora do enredo.

Em "Abril Despedaçado", a história das duas famílias (Breves e Ferreira), que se matam ao longo de gerações - por dívidas de sangue e terras – é narrada pelo jovem Pacu (Ravi Ramos Lacerda), irmão mais novo de Tonho (Rodrigo Santoro).

A localização é incerta. Mesmo assim, o filme só parece ganhar com a falta de precisão geográfica, torna-se, embora regional, mais universal. Sabe-se apenas que é Nordeste brasileiro, ano de 1910.

Agora é Tonho que carrega a incumbência de derramar mais uma vez o sangue de um Ferreira, por causa do ódio, da tradição e da honra dos Breves. E assim é feito.

O personagem de Santoro monta uma tocaia e segue-se uma das mais competentes seqüências de perseguição rodadas no cinema brasileiro (onde os pontos de vistas de cada um é mostrado concomitantemente, através de fusão. Até o tiro, até o final).

"Abril Despedaçado" leva o mesmo nome de um romance albanês. Ou seja, Walter Salles retirou das montanhas dos Balcãs, de um texto de Ismail Kadaré, os elementos para uma versão nordestina das vendetas, tão comuns na história não oficial do Brasil.

É do livro todo o ritual em torno das mortes sucessivas. É do livro a exigência das tréguas intermitentes, do respeito com a família odiada, com a rigidez do trabalho e, sobretudo, com a tradição. Mas não é do romance – e sim de uma simbologia própria da fita – os elementos que a tornaram uma obra poética. Até porque o livro de Kadaré mais parece um estudo antropológico.

Ismail Kadaré montou sobre um velho código de conduta balcã (o Kanun) uma história trágica. No filme de Salles, novos elementos fazem com que as engrenagens que são tão sheakespereanas, a priori impossíveis de serem quebradas, tornem-se um pouco maleáveis.

O tom trágico não deixa de existir. Mas no longa, a redenção, tema alvo do diretor desde o belíssimo "Terra Estrangeira", surge na figura infantil. Salles, portanto, além fazer uma adaptação do romance, impõe-se de liberdade para recriá-lo à medida brasileira. E não haveria outra forma de ser.

Aliás, é nas engrenagens de uma bolandeira (máquina rústica que mói a cana-de-açúcar) que está uma das mais importantes metáforas do filme. Enquanto o gado serve de tração para a máquina, enquanto a família sob o sol queima mais um dia no trabalho, o tempo passa.

Tonho, que recebeu a trégua de apenas uma lua, sente a cada girar da engrenagem, a cada vôo do irmão no balanço, a cada dia e noite que passa, sua morte sempre mais próxima. Como um personagem do filme o explica: "o relógio marca mais um, mais um, mais um. Mas para você ele diz: menos um, menos um, menos um...".

"Abril..." ainda tem o mérito de dizer muito com poucas palavras. É quase mudo, mas não é superficial. Tem poucos diálogos e muita imagem. A fotografia de Walter Carvalho é tão bonita que o filme chegou a receber acusações. Porque não seria ético ou justo retratar a miséria através da beleza.

Polêmicas e ingenuidades à parte, o longa tem imagens que ficam na memória por muito tempo, como o início do filme, quando Pacu começa a narrar na penumbra azul da madrugada, a tragédia de sua família.

Texto publicado originalmente em cabugi.com e Tribuna do Norte