A dor do impossível
As primeiras impressões sobre o filme 2046 – Os segredos do amor, de Wong Kar-Wai, costumam ser arrebatadoras. É certo que há um grupo de espectadores, mais afeitos às concatenações lógicas, que o renegam por não encontrar muitas ligações inteligíveis. E é nessa dicotomia entre razão e sensibilidade, que giram as discussões sobre a continuação do aclamado Amor à flor da pele.
Parece que todo o não entendimento sobre 2046 surge quando o público tenta fazer ligações com o filme anterior, lançado no ano de 2000. Não porque exista na sua continuação uma discordância de enredo, mas, sim, estética. Wong Kar-Wai não apenas dá seqüência à história do jornalista Chow Mo-Wan (Tony Leung), mas cria para ele todo um novo universo que não existia em Amor à flor da pele. Enquanto que na primeira história, o escritor mantinha seus encontros fortuitos e sigilosos com Su Li-Zhen (Maggie Cheung), neste ele é um bon vivant de muitas mulheres. Enquanto que em Amor à flor da pele as opções eram por uma câmera tão discreta quanto a impossibilidade daquele amor, em 2046 as opções são outras. Nesse último filme, Wong Kar-Wai prima por planos que desmascaram esses amores.
Há um signo importante a ser analisado, e é o do próprio nome do filme. 2046 é o nome de um quarto de hotel. No primeiro filme esse quarto era uma ambiente quase inviolável, onde a permanência da câmera era permitida por pouco tempo e onde quase tudo o que ali acontecia, não nos era permitido escrutar. No novo filme, 2046 é um novo quarto de hotel, embora o mesmo na nostalgia do personagem. Nessa continuação, o jornalista Chow acaba preferindo ficar num apartamento vizinho, o 2047, e assim ele melhor compreende o 2046 do presente e o do seu passado. Foi num apartamento de mesmo número onde a sua grande história de amor não se realizou. E é agora, nesse novo apartamento, que ele irá tentar reencontrar um significado para aquilo que perdeu, que de alguma forma não teve ou manteve.
Chow é um escritor de histórias baratas. Ele assume isso em Amor à flor da pele, quando reconhece sua incompetência para escrever sobre algo sério, mais digno. De algum modo, esse amor mal resolvido o faz tentar mais uma vez em 2046, quando escreve sobre o futuro. Uma ficção científica passada no ano que o número do apartamento prevê. 2046 seria um lugar no tempo em que os sentimentos não se perderiam, onde não haveria dor. Instalado em seu apartamento vizinho, olhando por frestas para a vida amorosa ao lado, ele escreve sobre a impossibilidade da felicidade no presente. Remete-a para um futuro e ao mesmo tempo para o único lugar no tempo onde experimentou algo de pleno, embora efêmero. Para Wong Kar-Wai, 2046 é o lugar no passado onde deixamos nossa plenitude e é o lugar no futuro onde vislumbramos um dia poder retomá-la. Entendendo isso, o resto é um jogo simples. Não entendendo, o filme é um emaranhado de imagens bem “pintadas”.
As relações entre presente e passado estão a todo instante misturadas na fragmentação imagética de 2046. Assim como as coincidências dos números de quartos, assim como as mulheres que passam pela vida do jornalista, assim como suas histórias de amores também mal resolvidas e inadaptadas. São histórias trágicas, que servem de alento e inspiração para o jornalista. Uma mulher que é morta pelo ciúme do parceiro, uma outra que espera no inverno um namorado que não virá, uma que todos os dias tenta aprender uma outra língua, a língua do seu amante japonês. Em todas elas, Chow busca a mesma do passado. E em algum momento, dentro do turbilhão de sentimentos que o filme analisa e projeta, há a tese de que o verdadeiro amor deve surgir no momento exato. É o fardo que esse escritor terá que carregar, seja na década de 1960 ou no trem que o leva para as amantes andróides de 2046.
E qual é esse exato momento para o amor verdadeiro? Pelo jeito ninguém sabe e por isso é importante o símbolo do trem que parte para esse lugar sem dor, onde há uma permanência das coisas, dos sentimentos. É um futuro aos moldes de Bade Runner, de Ridley Scott (1982), onde embora ninguém creia, há nos andróides a consciência de sua condição máquina. Há neles a consciência da impossibilidade de amar.
Estou no grupo que permaneceu arrebatado pelo filme. Mesmo compreendendo alguma verdade nas críticas que acusam Wong Kar-Wai de menor ousadia, mesmo entendendo que ele possa nessa continuação ter explorado algumas fórmulas já testadas por ele. Ao sair da sessão de 2046 eu percebi que ali havia algo que mudaria para sempre minha forma de ver e sentir o mundo. E isso, na arte, é maior do que tudo.
sábado, janeiro 28, 2006
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2 comentários:
Tu és um cába tão sabido, visse?
é, é, sofie! eu descobri isso também lendo um texto no jornal que nem chegava aos pés do do aristeca. verdade!
Eu fiz um poema pro nosso querido amigo Chow. Falo por ele:
"
Sim, pois por tudo me fiz teu.
Encontrei um lugar e lá te guardei.
Criei para ti este mundo sem que soubesses.
Um dia resolvi te visitar.
Me viste?
Cheguei em silêncio para não te acordar.
Teu sono é eterno em minha nova vida.
Por isso não te encontrei.
Como posso ter perdido o que guardei tão bem?
Estou preso na volta.
Vens me buscar?
Tenho a vida agora a perguntar:
Será?
Será?
E esperar...
Será?
"
bjs da amiga que num quer ter que decidir de quais dos 2 filmes gostou mais.
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